Sorolla, 1894, Ainda dizem que o peixe é caro
“Se os homens não conseguem referir- se a um valor comum, reconhecido por todos em cada um deles, então o Homem torna-se incompreensível para o próprio homem. O rebelde exige que esse valor seja claramente reconhecido em si mesmo, porque suspeita ou sabe que, sem ele, a desordem e o crime reinariam no mundo. O movimento de revolta surge nele como uma reivindicação de clareza e de unidade. A mais elementar rebelião exprime, paradoxalmente, a aspiração a uma ordem. Linha por linha, essa descrição convém ao revoltado metafísico. Este insurge-se contra um mundo fragmentado para dele reclamar a unidade. Contrapõe o princípio de justiça que nele existe ao princípio de injustiça que vê no mundo. Primitivamente, nada mais quer senão resolver essa contradição, instaurar o reino unitário da justiça, se puder, ou o da injustiça, se a isso for compelido. Enquanto espera, denuncia a contradição. Ao protestar contra a condição naquilo que tem de inacabado, pela morte, e de disperso, pelo mal, a revolta metafísica é a reivindicação motivada de uma unidade feliz contra o sofrimento de viver e de morrer. Se a dor da morte generalizada define a condição humana, a revolta, de certa forma, é dela contemporânea. Ao mesmo tempo em que recusa a sua condição mortal, o revoltado recusa-se a reconhecer o poder que o faria viver nessa condição. O revoltado metafísico, portanto, certamente não é ateu, como se poderia pensar, e sim obrigatoriamente blasfemo. Ele blasfema, simplesmente em nome da ordem, denunciando Deus como o pai da morte e o supremo escândalo. Voltemos ao escravo revoltado para esclarecer a questão. No seu protesto, ele estabelecia a existência do senhor contra o qual se revoltava. No entanto, demonstrava simultaneamente que o poder do senhor dependia de sua própria subordinação e afirmava o seu próprio poder: o de questionar permanentemente a superioridade que até então o dominava. Nesse sentido, senhor e escravo estão realmente no mesmo barco: a realeza temporária de um é tão relativa quanto a submissão do outro. As duas forças afirmam-se alternativamente, no instante da rebelião, até o momento em que se confrontarão para se destruírem, e uma das duas então desaparecerá provisoriamente.
Da mesma forma, se o revoltado metafísico se volta contra um poder, cuja existência simultaneamente afirma, ele só reconhece a sua existência no próprio instante em que a contesta. Arrasta então esse ser superior para a mesma aventura humilhante do homem, com o seu vão poder equivalendo à nossa vã condição. Submete-o a essa força de recusa, inclina-o por sua vez diante da parte do homem que não se inclina, integra-o à força numa existência para nós absurda, retirando-o, enfim, do seu refúgio intemporal para compromete-lo na história, muito longe de uma estabilidade eterna (que só poderia encontrar no consentimento unânime dos homens). A revolta afirma desse modo que, no seu nível, qualquer existência superior é, pelo menos, contraditória.”
Albert Camus, O Homem revoltado, S. Paulo, Record, 2011, p.30,
31,
A escrita de Camus excessiva e desassombrada já não nos
choca mas faz-nos esboçar um meio sorriso de condescendência, a nossa época
intelectual prefere discutir argumentos, cansou-se de ideologias ou não as tem,
perdeu-as ou não as quer, por demasiado espalhafatosas e condenadas a uma ruína inevitável
e previsível. A questão que Camus faz ressurgir não é ideológica mas dialética.
A dialética assegura-nos a passagem das contradições próprias do viver histórico e psicológico dos indivíduos e, ao mesmo tempo, eleva a contradição ao
estatuto de duplamente necessária; necessária para a passagem a uma ordem diferente e necessária enquanto constante inevitável do percurso humano/histórico. A revolta exprime e resulta da vivência dessa contradição. Ora, quando analisamos filosoficamente a argumentação,
vemos apenas uma perspetiva formal ou de conteúdos e descontextualizamos da história e da condição histórica do discurso, desvinculamo-lo assim do seu compromisso ideológico que resulta dessa condição e do ser particular que argumenta num determinado momento da sua vida e da
sua história. Deste modo, a própria argumentação fica sem um fim, perdida em
si, e sem o seu verdadeiro sentido que é psicológico ou ideológico ou ambos ou
um deles.