Christo, Paris, 1985, Pont Neuf embrulhada
Berkeley defendera que as ideias não residem em coisa alguma fora da
mente; por sua vez, Hume insiste em que também nada há na mente onde elas
possam residir. Não há qualquer impressão do eu, e por-tanto nenhuma ideia do
eu; há apenas feixes de impressões. Esta conclusão é o fim do caminho que se
inicia com o pressuposto, comum a todos os empiristas, de que os pensamentos
são imagens e de que a relação existente entre quem pensa e os seus pensamentos
é a mesma que a relação existente entre um olhar interior e uma galeria de
quadros interior. Da mesma maneira que não podemos ver os nossos próprios olhos,
também não podemos percecionar o nosso eu. Mas é um erro considerar que a
imaginação é um sentido interior. A conceção de imagens mentais não é um tipo
peculiar de sensação, é uma sensação comum fantasiada. A noção de um sentido
interior conduz à ideia de um eu que é o sujeito da sensação interior. Na tradição
de Locke e de Berkeley, o eu é o olho da visão interior, o ouvido da audição
interior; ou, antes, é o que possui tanto o olho como o ouvido interiores. Hume
mostrou que este sujeito interior era ilusório, mas não denunciou o erro
subjacente, que conduziu os empiristas a abraçar o mito do eu interior. O
verdadeiro caminho de saída do impasse consiste em rejeitar a identificação
entre pensamento e imagem, e aceitar que um sujeito que pensa não é um sujeito
solitário de perceção interior, mas um ser humano corpóreo que vive num domínio
público. Hume orgulhava-se de ter feito pela psicologia aquilo que Newton fizera
pela física. Propôs uma teoria (vácua) da associação de ideias, como contraparte da teoria da gravitação. Mas seria injusto acusar
Hume da esterilidade da sua psicologia filosófica; ele herdou dos seus
precursores do século XVII uma filosofia da mente empobrecida, e um dos seus
méritos foi ter retirado, com considerável candura, as conclusões absurdas
implícitas nos pressupostos empiristas. Mas aquilo que o faz merecer o lugar
fundamental que ocupa na história da filosofia é a sua explicação da
causalidade.
Se procurarmos a origem da ideia de causa, diz Hume, descobriremos que
ela não pode ser uma qualidade particular inerente aos objetos; porque objetos
dos mais variados tipos podem ser causas e efeitos. O que temos de procurar são
relações entre objetos. De facto, descobrimos que as causas e os efeitos têm de
ser contíguos entre si, e que as causas têm de ser anteriores aos seus efeitos.
Mas isto não é suficiente; achamos ainda que tem de haver uma conexão
necessária entre causa e efeito, embora a natureza desta conexão seja difícil
de estabelecer. Hume nega que tenha de haver uma causa para a existência de tudo
aquilo que começa a existir. Sendo todas as ideias distintas separáveis umas
das outras, e sendo as ideias de causa e efeito evidentemente distintas, é
fácil concebermos um objeto como não existente neste momento, e existente no
momento seguinte, sem lhe juntarmos a ideia distinta de uma causa ou de um
princípio produtivo. É evidente que «causa» e «efeito» são termos correlativos,
como o são «marido» e «mulher», e que todo o efeito tem de ter uma causa, da
mesma maneira que todo o marido tem de ter uma mulher. Mas isto não prova que
todos os acontecimentos tenham de ter uma causa, da mesma maneira que, do facto
de todos os maridos terem de ter uma mulher, não se segue que todos os homens
tenham de ter uma mulher. Tanto quanto sabemos, pode haver acontecimentos sem
causas, tal como existem homens que não têm mulher. Se não há qualquer absurdo
em conceber que algo venha à existência ou seja sujeito a alterações sem uma causa,
não há, a fortiori, qualquer absurdo em conceber que um acontecimento ocorra
sem um tipo particular de causa. Sendo logicamente concebível que muitos
efeitos diferentes resultem de uma causa particular, só a experiência pode
levar-nos a esperar o efeito real. Mas com base em quê?
Anthony Kenny, História concisa da Filosofia, lisboa, 1999, Temas e debates, p.334,335