domingo, abril 12, 2020

A arte como fuga


Henri Cartier-Bresson, Nice


Teremos ganho muito para a ciência estética ao chegarmos não só à compreensão lógica, mas também à imediata segurança da opinião de que o progresso da arte está ligado à duplicidade do Apolínico e do Dionisíaco; de maneira parecida com a dependência da geração da dualidade dos sexos, em lutas contínuas e com reconciliações somente periódicas. Estes nomes tomamos emprestados aos gregos, que manifestam ao inteligente as profundas ciências ocultas da sua conceção artística não em ideias, mas nas figuras enérgicas e claras do seu mundo mitológico. A ambas as divindades artísticas destes, Apolo e Dionísio está ligado o nosso reconhecimento de que existe no mundo grego uma enorme contradição, na origem e nos fins, entre a arte plástica — a de Dionísio; — ambos os impulsos, tão diferentes, marcham um ao lado do outro, na maior parte das vezes em luta aberta e incitando-se mutuamente para novos partos, a fim de neles poder perpetuar a luta deste contraste, que a palavra comum “arte” somente na aparência consegue anular; até que eles afinal, através do milagroso ato metafísico do “desejo” helénico, aparecem unidos, produzindo por fim, nesta união, a obra de arte, tanto dionisíaca quanto apolínica, da Tragédia Ática.

Para melhor apreciarmos ambos os impulsos imaginemo-los, antes de mais nada, como mundos de arte separados do sonho e da embriaguez; fenómenos fisiológicos entre os quais é possível notar uma contradição como a existente entre o apolínico e o dionisíaco. No sonho se apresentaram primeiramente, segundo a opinião de Lucrécio, as esplêndidas figuras divinas às almas humanas.

No sonho via o grande escultor a fascinante estrutura dos membros de seres sobre-humanos, e o poeta helénico, inquirido sobre os segredos da produção poética, seria da mesma forma lembrado ao sonho e teria dado ensinamentos parecidos, como aos de Hans Sachs nos Mestres-Cantores:

Meu amigo, eis a obra do poeta,

Percebe seus sonhos e os interpreta.

Acredita, o verdadeiro, o humano destino

É-lhe mostrado ao sonhar:

Toda a arte poética e todo poetar,

Nada mais é que uma interpretação com tino.

O belo brilho dos mundos de sonho, em cuja produção o homem é um artista perfeito, é condição de existência para toda arte plástica, e também, como veremos, de uma parte essencial da poesia. Gozamos a imediata compreensão da figura, todas as formas falam connosco, nada há de indiferente e desnecessário. Na vida mais elevada desta verdade de sonho ainda temos o sentimento transparente da sua aparência; pelo menos é esta a minha experiência, para cuja continuidade e normalidade teria eu de citar diversos testemunhos e os ditos dos poetas. O filósofo tem mesmo o pressentimento de que também sob esta realidade em que vivemos e somos, se encontra oculta uma bem diferente, e que portanto também ela é aparência; e Schopenhauer indica mesmo o dom que a alguns homens  todas as cousas parecem meros fantasmas ou sonhos, como sinal de aptidão filosófica. Assim como o filósofo se porta, perante a realidade da existência, assim se comporta o homem, artisticamente impressionável, perante a realidade do sonho; ele gosta de contemplar, e contempla atentamente; pois é por estas imagens que ele interpreta a vida, e com estes acontecimentos se exercita para a mesma.

Friedrich Nietzsche, A Origem da tragédia, cap.4 p.20

2 comentários:

Jacqueline M disse...

Ainda bem que encontrei esse blog. Estou adorando.

Helena Serrão disse...

Obrigada Jacqueline.