Eichmann trabalhava na organização e transporte de milhares de homens, mulheres e crianças judeus para os campos de concentração na Polónia. Foi julgado por um tribunal israelita depois de ter sido raptado na Argentina para onde fugiu depois da guerra ter acabado. Foi condenado à morte e enforcado. No relato do seu julgamento Hannah Arendt faz o retrato de um homem que está longe de ser uma encarnação do mal, embora seja responsável ou coresponsável ou activo cooperante no crime de extermínio em massa de milhares ( milhões?) de pessoas.
O texto alemão do interrogatório policial gravado, realizado de 29 de
maio de 1960 a 17 de
Janeiro de 1961, com cada página corrigida e aprovada por Eichmann,
constitui uma verdadeira mina de ouro para um psicólogo — contanto que ele
tenha a sabedoria de entender que o horrível pode ser não só ridículo como
rematadamente engraçado. Parte do humor não pode ser transmitido noutra língua,
porque está justamente na luta heróica que Eichmann trava com a língua alemã,
que invariavelmente o derrota. É engraçado quando ele usa o termo “palavras
aladas” (geflügelte Worte, um coloquialismo alemão para designar citações
famosas dos clássicos) querendo dizer frases feitas, Redensarten, ou slogans, Schlagworte.
Era engraçado quando, durante a inquirição sobre os
documentos Sassen, feita em alemão pelo juiz presidente, ele usou a
frase “kontra geben” (pagar na mesma moeda), para indicar que havia resistido
aos esforços de Sassen para melhorar suas histórias; o juiz Landau,
desconhecendo evidentemente os mistérios dos jogos de cartas (de onde provém a expressão),
não entendeu, e Eichmann não conseguiu achar nenhuma outra maneira de se
expressar.
Vagamente consciente de uma incapacidade que deve tê-lo perseguido
ainda na escola — chegava a ser um caso brando de afasia — ele pediu desculpas,
dizendo: “A minha única língua é o “oficialês” [Amtssprache]”. Mas a questão é
que o “oficialês” transformou-se na sua única língua porque ele sempre foi
genuinamente incapaz de pronunciar uma única frase que não fosse um clichê.
(Será que foram esses “clichés” que os psiquiatras acharam tão “normais” e
“desejáveis”? Serão essas as “ideias positivas” que um clérigo espera encontrar
nas almas para as quais ministra? A melhor oportunidade para Eichmann
demonstrar esse lado positivo de seu carácter em Jerusalém surgiu quando o
jovem oficial de polícia encarregado de seu bem-estar mental e psicológico lhe deu
um exemplar de Lolita para relaxar. Dois dias mais tarde, Eichmann devolveu o
livro, visivelmente indignado; “Um livro nada saudável” — “Das ist aber ein
sehr unerfreuliches Buch” — disse ele a seu guarda.) Sem dúvida, os juízes
tinham razão quando disseram ao acusado que tudo o que dissera era “conversa vazia”
— só que eles pensaram que o vazio era fingido, e que o acusado queria encobrir
outros pensamentos que, embora hediondos, não seriam vazios. Essa ideia parece
ter sido refutada pela incrível coerência com que Eichmann, apesar da sua má
memória, repetia palavra por palavra as
mesmas frases feitas e clichés semi-inventados (quando conseguia fazer
uma frase própria, ele
repetia-a até transformá-la em cliché) sempre que se referia a um
incidente ou acontecimento que achava importante. Quer estivesse a escrever as suas
memórias na Argentina ou em Jerusalém, quer estivesse a falar com o
interrogador policial ou com a corte, o que ele dizia era sempre a mesma coisa,
expressa com as mesmas palavras. Quanto mais se ouvia Eichmann, mais óbvio
ficava que sua incapacidade de falar estava intimamente relacionada com sua
incapacidade de pensar, ou seja, de pensar do ponto de vista de outra pessoa.
Não era possível nenhuma comunicação com ele, não porque mentia, mas porque se
cercava do mais confiável de todos os guarda-costas contra as palavras e a
presença de outros, e portanto contra a realidade enquanto tal.
Hannah Arendt, Eichmann em Jerusalém, Um relato sobre a banalidade do mal, Companhia das letras, pp.33
Tradução José Siqueira