sexta-feira, janeiro 13, 2023

Intolerância para com a intolerância


Foto Carolyn Drake

À questão " deverá o tolerante tolerar o intolerante?", deveria ser dado em resposta um retumbante "não".

A tolerância tem de se proteger a si própria. Pode fazê-lo facilmente, dizendo que todos podem expor um ponto de vista mas ninguém  pode forçar os outros  a aceitá-lo. A única coerção deve ser a da argumentação ; a única obrigação , o raciocínio honesto. (...)

A intolerância é um fenómeno psicologicamente interessante  porque é sintomático de insegurança e medo. Os fanáticos, que, se pudessem, nos obrigariam a agir em conformidade com o seu modo de pensar, poderiam pretender  estar a tentar salvar a nossa alma, mesmo contra a nossa vontade, mas, na verdade, fá-lo-iam porque se sentiam ameaçados. (...) O medo gera a intolerância e a intolerância gera o medo: o ciclo é vicioso.

C. Grayling, O significado das coisas, Gradiva, pp 23-24

domingo, janeiro 08, 2023

Como a perspetiva anula a hierarquia

 


Estátua de Púchkin em Moscovo (1880)


 “ Ao monumento a Púchkin estava ligado um jogo, o meu jogo: encostar ao seu pedestal um boneco de porcelana branca, do tamanho de um mindinho infantil - vendiam-se nas lojas de loiça, quem cresceu em Moscovo no fim do século passado, sabe: havia anões debaixo dos cogumelos, havia crianças sob os guarda-chuvas - , encostar portanto ao pedestal do gigante esta figurinha e, passando o olhar, pouco a pouco, por toda a altura do monumento até que a cabeça ficasse lançada para trás ao máximo, comparar a estatura, (…) O monumento de Púchkin comigo debaixo dele e a figurinha debaixo de mim era a minha primeira lição prática de hierarquia: eu sou um gigante perante a figurinha, mas perante o Púchkin sou eu própria, ou seja uma menina pequena. Mas que crescerá. Para a figurinha, sou a mesma coisa que o monumento de Púchkin para mim. Mas o que será, então, o monumento de Púchkin para a figurinha? E, depois de reflexões dolorosas, surgiu uma repentina luz: é para ela tão grande que, simplesmente, não o vê. Pensa que é uma casa. Ou um trovão. Ora, ela para ele é tão pequena que também não a vê, acabou-se. Pensa ele: é uma pulga. Mas a mim ele vê. Porque sou grande e gorda. E crescerei ainda mais.”

Marina Tsvetaeva, Moscovo 1892/1941

Citada por Maria Stepánova in Memória da memória, Relógio d’Água, 2022, p.79

Este texto causou-me uma forte impressão, talvez por ter duas informações prévias: que a estátua de Púchkin em Moscovo é um monumento gigantesco de 1880, visitado por turistas, imagem de marca de uma certa cultura do esmagamento soviética e, que Tsvetaeva morreu na miséria, porque nem um emprego de lavadora de pratos lhe deram, condenada e excomungada pela ditadura estalinista (uma das filhas morreu de fome, o marido foi fuzilado).  Depois disto, compreendo como não faz sentido a perspetiva do poder, como ela aniquila e branqueia a realidade de modo a retirar-lhe cor e espessura. A surpresa do jogo das hierarquias é mesmo a invisibilidade do pequeno e do grande e, deste modo, a  destruição da verdade da hierarquia.