sexta-feira, fevereiro 24, 2023

A refexão moral exige um interlocutor

 


Pierre-Auguste Renoir, O almoço dos barqueiros (1881), França


“Podemos começar por observar como a reflexão moral surge naturalmente de um encontro com uma questão moral difícil. Podemos partir de uma opinião ou convicção sobre o que é certo fazer: “Desviar o elétrico para outra linha.” Depois refletimos na razão da nossa convicção e procuramos o princípio em que se baseia: “É melhor sacrificar uma vida para evitar que muitos morram”. De seguida, confrontados com uma situação que ameaça o princípio, somos atirados para a confusão: “Pensei que era sempre certo salvar o maior número de vidas possível, mas parece-me errado empurrar o homem da ponte (…)”. Sentir a força desta confusão, bem como a pressão para resolvê-la, é o impulso para a filosofia.

Confrontados com esta tensão, podemos rever o nosso juízo sobre o que é certo fazer ou repensar o princípio que propusemos inicialmente. À medida que vamos encontrando novas situações, movimentamo-nos entre os nossos juízos e os nossos princípios, revendo os primeiros à luz dos segundos e vice-versa. A reflexão moral consiste neste movimento do pensamento: ir do mundo da ação para a esfera das razões, e depois regressar ao primeiro.

Esta forma de conceber a argumentação moral, como uma dialética entre os nossos juízos sobre situações particulares, e os princípios que afirmamos refletidamente, tem uma grande tradição. Recua aos diálogos de Sócrates e à filosofia moral de Aristóteles. Mas, apesar da sua longa linhagem, está sujeita à seguinte objeção: Se a reflexão moral consiste em procurar um ajuste entre os juízos que fazemos e os princípios que afirmamos, como poderá levar-nos à justiça ou à verdade moral? Mesmo que, ao longo da vida, consigamos por as nossas intuições morais de acordo com os princípios que aceitamos, como poderemos confiar que o resultado seja mais que um emaranhado consistente de preconceitos?

A resposta é que a reflexão moral é uma atividade pública, não uma ocupação solitária. Exige um interlocutor: um amigo, um vizinho, um colega, um concidadão. Por vezes o interlocutor pode ser imaginário, como quando discutimos connosco mesmos. Mas não podemos descobrir o significado da justiça ou a melhor forma de viver apenas por introspeção.

Michael J. Sandel, Justiça: o que será certo fazer? Lisboa, Presença, pp. 28-29

domingo, fevereiro 12, 2023

A comunidade como origem e garantia dos direitos humanos individuais.

 


Quanto mais elevado era o número de pessoas sem direitos, maior era a tentação de olhar menos para o procedimento dos governos opressores e mais para a condição dos oprimidos. E era clamoroso que essas pessoas, embora perseguidas por algum pretexto político, já não constituíssem, como sempre acontecia com os perseguidos no decorrer da história, um risco e uma imagem vergonhosa para os opressores; não eram consideradas, nem pretendiam ser, inimigos ativos, mas eram e não pareciam ser outra coisa senão seres humanos cuja própria inocência — de qualquer ponto de vista e especialmente do ponto de vista do governo opressor — era o seu maior infortúnio. A inocência, no sentido de completa falta de responsabilidade, era a marca da sua privação de direitos e o selo da sua perda de posição política. Portanto, só aparentemente a necessidade da imposição dos direitos humanos se relaciona com o destino dos autênticos refugiados políticos. Estes, necessariamente pouco numerosos, ainda gozam do direito de asilo em muitos países, e esse direito age, de maneira informal, como genuíno substituto da lei nacional. Um dos aspetos surpreendentes da nossa experiência com os apátridas que podem beneficiar-se legalmente com a perpretação de um crime é o fato de que parece mais fácil privar da legalidade uma pessoa completamente inocente do que alguém que tenha cometido um crime. Assumiu uma horrível realidade o famoso chiste de Anatole France — "se eu for acusado de roubar as torres de Notre Dame, a única coisa que posso fazer é fugir do país". Os juristas habituaram-se a pensar na lei em termos de castigo, o que realmente nos priva de certos direitos; para eles pode ser mais difícil que para um leigo reconhecer que a privação da legalidade, isto é, de todos os direitos, já não se relaciona com crimes específicos.

 

Essa situação é um exemplo das muitas perplexidades inerentes ao conceito dos direitos humanos. Não importa como tenham sido definidos no passado (o direito à vida, à liberdade e à procura da felicidade, de acordo com a fórmula americana; ou a igualdade perante a lei, a liberdade, a proteção da propriedade e a soberania nacional, segundo os franceses); não importa como se procure aperfeiçoar uma fórmula tão ambígua como a busca da felicidade, ou uma fórmula antiquada como o direito indiscutível à propriedade; a verdadeira situação daqueles a quem o século XX jogou fora do âmbito da lei mostra que esses são direitos cuja perda não leva à absoluta privação de direitos. O soldado, durante a guerra, é privado do seu direito à vida; o criminoso, do seu direito à liberdade; todos os cidadãos, numa emergência, do direito de buscarem a felicidade; mas ninguém dirá jamais que em qualquer desses casos houve uma perda de direitos humanos. Por outro lado, esses direitos podem ser concedidos (se não usufruídos) mesmo sob condições de fundamental privação de direitos. A calamidade dos que não têm direitos não decorre do fato de terem sido privados da vida, da liberdade ou da procura da felicidade, nem da igualdade perante a lei ou da liberdade de opinião — fórmulas que se destinavam a resolver problemas dentro de certas comunidades — mas do fato de já não pertencerem a qualquer comunidade.

A sua situação, angustiante, não resulta do fato de não serem iguais perante a lei, mas sim de não existirem mais leis para eles; não de serem oprimidos, mas de não haver ninguém mais que se interesse por eles, nem que seja para oprimi-los. Só no último estágio de um longo processo, o seu direito à vida é ameaçado; só se permanecerem absolutamente "supérfluos", se não se puder encontrar ninguém para "reclamá-los", as suas vidas podem correr perigo. Os próprios nazis começaram a sua exterminação dos judeus privando-os, primeiro, de toda condição legal (isto é, da condição de cidadãos de segunda classe) e separando-os do mundo para juntá-los em guetos e campos de concentração; e, antes de acionarem as câmaras de gás.

 

                                                                              Hannah Arendt, As origens do totalitarismo, p.308

 

domingo, fevereiro 05, 2023

Há 62 anos era assim... hoje...continua

 


“Tive de acabar por deixar as estradas escondidas entre as árvores e fazer o meu melhor para atravessar as cidades, como Hartford e Providence, que são grandes cidades, afadigando-se nas fábricas, enxameando de trânsito. Leva muito mais tempo a atravessar as cidades do que a percorrer várias centenas de milhas. E no intrincado esquema de trânsito, enquanto tentamos encontrar o caminho através delas, não há possibilidade de vermos nada. Mas agora que atravessei centenas de cidadezinhas e de grandes cidades com todos os climas e em toda a espécie de cenários, claro que são todas diferentes e que as pessoas têm pontos de diferença, mas em alguma coisa são todas iguais. As cidades americanas são como buracos de texugo, rodeadas, todas elas, de retalho, cercadas por pilhas de automóveis a enferrujar, e quase asfixiadas em refugo. Tudo quanto usamos vem em caixas, caixinhas e caixotes, as chamadas embalagens de que tanto gostamos. Os montes de coisas que deitamos fora são muito maiores do que as coisas que usamos. Nisto, se não por outro meio, podemos ver a exuberância desenfreada e perdulária da nossa produção, e o desperdício parece ser o seu índice. Seguindo o meu caminho, pensava como em França e na Itália cada uma destas coisas deitada fora seria guardada e aproveitada para alguma coisa. Isto não é dito como crítica de um sistema ou do outro, mas pergunto a mim mesmo se não virá um tempo em que já não possamos permitir-nos o nosso desperdício – desperdícios químicos nos rios, desperdícios de metais por toda a parte, e desperdícios atómicos profundamente sepultados na terra ou afundados no mar. Quando uma aldeia índia ficava demasiado enterrada na sua própria imundice, os habitantes mudavam de lugar. Mas nós não temos lugar para onde mudar.

John Steinbeck, Viagens com o Charlie, livros do Brasil, Lx