quarta-feira, setembro 27, 2023

Sobre a verruga de aceitar o que não se pode saber.

 


Thomas Hoepker, Itália, 1956

" Quando nos esforçamos por descrever o eu sem o assimilar a outrem, impõe-se uma primeira observação, e é a de que ele só existe de maneira intermitente e, no fim de contas, bastante rara. A sua presença corresponde a um modo de conhecimento secundário e como que reflexivo. O que se passa, realmente, de maneira primária e imediata? Pois bem! Os objetos estão lá todos, brilhando ao Sol ou recolhidos à sombra, rugosos ou macios, pesados ou leves; são conhecidos, saboreados, pesados e até cozidos, polidos, dobrados, etc. sem que esse eu que conhece, saboreia, pesa, coze, etc. por qualquer forma exista, salvo se se cumpre o ato de reflexão que me faz surgir, e ele raramente se cumpre. No estádio primário do conhecimento, a consciência que eu tenho de um objeto é o próprio objeto, o objeto é conhecido, cheirado, etc., sem que alguém que conheça, cheire, etc. Não devemos falar aqui de uma vela que projeta um raio luminoso sobre as coisas. Tal imagem deve ser substituída por outra; a dos objetos fosforescentes por si próprios, sem algo exterior a iluminá-los.

Há neste estádio ingénuo, primário e como que impulsivo, que é o nosso modo normal de existência, uma feliz solidão do conhecido, uma virgindade das coisas que, todas elas, possuem em si próprias, como outros tantos atributos da sua essência – cor, odor, sabor e forma. Então Robinson é Speranza. Só tem consciência de si através das frondes dos mirtos, onde o Sol dardeja um punhado de flechas, só se conhece na espuma da onda deslizando sobre a areia dourada.

E de repente a mola salta. O sujeito arranca-se ao objeto, despojando-o de uma parte da sua cor e do seu peso. Algo estalou no mundo e um pedaço das coisas abate-se, tornando-se eu. Cada objeto é desqualificado em proveito de um sujeito correspondente. A luz torna-se olho, e já não existe como tal; é só excitação da retina. O odor torna-se narina, e o próprio mundo revela-se inodoro. A música do vento nos paletúvios é refutada; mais não é que perturbação do tímpano. O mundo inteiro acaba-se por se fundir na minha alma, que é a própria alma de Speranza, arrancada à ilha, a qual morrerá sob o meu olhar cético. “

Michel Tournier, Sexta feira ou os limbos do Pacífico, S.. Paulo, Difel, 1985, p.86,87


A velha questão que nos interessa, de saber se as coisas são assim para mim, ou são mesmo assim como são para mim. Sendo que é uma questão sem forma de deslindamento. Mesmo a existência de um outro sujeito dotado de outra perceção não nos ajudaria a deslindar visto que de modo nenhum se pode saber o que são as coisas  em si, mas sempre de algum modo para ti ou para mim. Seja como for, não nos conduz esta reflexão obrigatoriamente ao ceticismo, pois há sem dúvida uma partilha das mesmas determinações do objeto por vários sujeitos, o que me leva a concluir que o mais correto é estabelecer o limite de que não há O conhecimento, mas o conhecimento humano, aquele que todos, num fenómeno intersubjetivo, partilham e aferem. HS

quarta-feira, setembro 20, 2023

Limites do conhecimento

 


Patrick Zachmann, 15 de Abril 2019, Destruição pelo fogo da Catededral de Notre dame em Paris.

“ O cientismo -perspetiva de que a ciência pode explicar tudo, e que em última análise irá fazê-lo -não é o mesmo que a ciência. A física das partículas não pretende explicar os sistemas políticos; a química inorgânica não pretende explicar as qualidades da poesia romântica. A ciência é específica quanto ao seu tema-os seus estudos centram-se individualmente na estrutura fundamental da matéria, na evolução das espécies biológicas, na natureza das galáxias distantes, no desenvolvimento das vacinas contra as infeções virais. É uma empresa fortemente ciente de si, sempre orientada para o escrutínio a que os cientistas submetem o seu próprio trabalho, e os trabalhos alheios, muito antes de se aventurarem a publicá-los. O exemplo da ciência é genérico. (…)

Estas considerações obrigam-nos a confrontar os problemas -céticos, metodológicos e admonitórios – que dificultam a investigação, e se tornam mais claros com os recentes avanços dramáticos do conhecimento, precisamente devido à imensa ignorância que revelam. Identifico uma dúzia deles, e formulo-os onde for apropriado na discussão posterior. Dou-lhes as seguintes designações:

O problema do buraco da agulha. Todas as investigações têm como ponto de partida dados muito limitados e terrivelmente circunscritos a que temos acesso local no espaço e no tempo, e que nos dão, do nosso ponto de vista finito, uma perspetiva do universo e do passado como se fosse através do buraco de uma agulha, posicionado precisamente à nossa escala. Será que com os nossos métodos conseguimos ultrapassá-lo e ir além dele?

O problema da metáfora. Que metáforas e analogias se invoca para dar sentido ao que estas investigações nos dizem? Poderão ser enganadoras?

O problema do mapa. Qual é a relação entre as teorias e as realidades que constituem os seus objetos, dadas as diferenças análogas entre um mapa e o país que esse mapa representa?

O problema dos critérios. Quais são as justificações e, quando for necessário, as retificações para a aplicação de critérios como a “simplicidade”, a “otimalidade” e até a “beleza” e a “elegância”, na formulação de programas de investigação e na aprovação de resultados? Invocar estes “critérios extra teóricos” ajuda a investigação ou distorce-a?

O problema da verdade. Dado que a investigação empírica nos dá probabilidades refutáveis, quais são os padrões (como a escala sigma na ciência) tidos como satisfatórios, quase certos? Sugere isto que temos de tratar o conceito de verdade de maneira pragmática, como um objetivo da investigação (talvez inatingível) para o qual, no plano ideal, esta converge estrategicamente? Onde cabe aqui o conceito da própria “verdade”?

O problema de Ptolomeu. O modelo geocêntrico do Universo “funcionava” em vários aspetos, permitindo boa navegação nos oceanos e a previsão de eclipses, mostrando por isso que uma teoria pode ser eficaz em alguns aspetos, apesar de ser incorreta. Como evitar que sejamos enganados pela adequação pragmática?

O problema do martelo. Resumindo incisivamente como “se a nossa única ferramenta fosse um martelo, tudo parece um prego”, este problema recorda-nos que temos tendência para ver apenas o que os nossos métodos e equipamentos são capazes de revelar.

O problema do lampião. Procuramos as chaves que perdemos debaixo do lampião, à noite, porque é o único sítio em que conseguimos ver. Investigamos o que é acessível á investigação pela óbvia razão de não podermos ter acesso ao que é inacessível.

O problema da interferência. Investigar e observar pode afetar o que está a ser investigado e observado. Quando estudamos animais no meio selvagem, estamos a estudá-los como seriam caso não estivessem a ser observados, ou estamos a estudar comportamentos influenciados pela nossa observação? Daí que isto seja conhecido como “efeito do observador”. (…)

O problema da interpolação. Um problema sobretudo para a história  e as ciências psicológicas,  áreas nas quais as interpretações dos dados se fazem muitas vezes em fução de pressupostos que são próprios do tempo e da experiência dos investigadores. Conseguiremos defender-nos contra isto, quando é uma fonte de distorção?

O problema de Parménides. O perigo implícito do reducionismo; reduzir tudo a um único princípio último, causal ou explicativo, que à primeira vista parece o pior tipo de erro elementar, mas que, curiosamente, é uma das características das ciências rígidas.

E, por último, o problema do martelo. O desejo de chegar a uma conclusão, de ter uma explicação ou crónica completa. (…)

Estes problemas fazem alguns pensadores dizer que há coisas que nunca poderemos saber. Dizem, por exemplo, que as questões sobre a natureza da consciência nunca terão resposta, porque tentá-lo é como um olho que tenta ver-se a si próprio. (…)

Na verdade, é crucial apostar nas possibilidades ilimitadas do conhecimento; é isso que nos incentiva a procurar uma compreensão maior do Universo e de nós mesmos.”

A.C. Grayling, As fronteiras do conhecimento, 2021, Lx, Ed. 70, p.23,24,25

 

 Sendo estes e outros problemas inerentes à condição limitada do homem, seria de todo o interesse invocar a própria subjetividade do homem que investiga e daquele que incorpora os dados da investigação científica na sua vida. A esse propósito surgem inúmeros exemplos que manipulam esses dados de acordo com os seus interesses pessoais. Lembro a recente experiência coletiva da pandemia de COVID, como pessoas que consultam os médicos quando doentes, cumprindo de forma confiante os seus mandamentos, e que neste contexto, se recusavam a usar a máscara quando esta era prescrita, não por um médico, mas pela quase totalidade do corpo médico mundial. O que é verdadeiro quando transladado para o lado da subjetividade do homem de ciência que investiga e quando investiga. HS