Thomas Hoepker, Itália, 1956
" Quando nos esforçamos por descrever o eu sem o assimilar a outrem, impõe-se uma primeira observação, e é a de que ele só existe de maneira intermitente e, no fim de contas, bastante rara. A sua presença corresponde a um modo de conhecimento secundário e como que reflexivo. O que se passa, realmente, de maneira primária e imediata? Pois bem! Os objetos estão lá todos, brilhando ao Sol ou recolhidos à sombra, rugosos ou macios, pesados ou leves; são conhecidos, saboreados, pesados e até cozidos, polidos, dobrados, etc. sem que esse eu que conhece, saboreia, pesa, coze, etc. por qualquer forma exista, salvo se se cumpre o ato de reflexão que me faz surgir, e ele raramente se cumpre. No estádio primário do conhecimento, a consciência que eu tenho de um objeto é o próprio objeto, o objeto é conhecido, cheirado, etc., sem que alguém que conheça, cheire, etc. Não devemos falar aqui de uma vela que projeta um raio luminoso sobre as coisas. Tal imagem deve ser substituída por outra; a dos objetos fosforescentes por si próprios, sem algo exterior a iluminá-los.
Há neste estádio ingénuo, primário e como que impulsivo, que
é o nosso modo normal de existência, uma feliz solidão do conhecido, uma
virgindade das coisas que, todas elas, possuem em si próprias, como outros
tantos atributos da sua essência – cor, odor, sabor e forma. Então Robinson é
Speranza. Só tem consciência de si através das frondes dos mirtos, onde o Sol
dardeja um punhado de flechas, só se conhece na espuma da onda deslizando sobre
a areia dourada.
E de repente a mola salta. O sujeito arranca-se ao objeto,
despojando-o de uma parte da sua cor e do seu peso. Algo estalou no mundo e um
pedaço das coisas abate-se, tornando-se eu.
Cada objeto é desqualificado em proveito de um sujeito correspondente. A luz
torna-se olho, e já não existe como tal; é só excitação da retina. O odor
torna-se narina, e o próprio mundo revela-se inodoro. A música do vento nos paletúvios é refutada; mais não é que
perturbação do tímpano. O mundo inteiro acaba-se por se fundir na minha alma,
que é a própria alma de Speranza, arrancada à ilha, a qual morrerá sob o meu
olhar cético. “
Michel Tournier, Sexta feira ou os limbos do Pacífico, S..
Paulo, Difel, 1985, p.86,87
A velha questão que nos interessa, de saber se as coisas são assim para mim, ou são mesmo assim como são para mim. Sendo que é uma questão sem forma de deslindamento. Mesmo a existência de um outro sujeito dotado de outra perceção não nos ajudaria a deslindar visto que de modo nenhum se pode saber o que são as coisas em si, mas sempre de algum modo para ti ou para mim. Seja como for, não nos conduz esta reflexão obrigatoriamente ao ceticismo, pois há sem dúvida uma partilha das mesmas determinações do objeto por vários sujeitos, o que me leva a concluir que o mais correto é estabelecer o limite de que não há O conhecimento, mas o conhecimento humano, aquele que todos, num fenómeno intersubjetivo, partilham e aferem. HS