quarta-feira, setembro 20, 2023

Limites do conhecimento

 


Patrick Zachmann, 15 de Abril 2019, Destruição pelo fogo da Catededral de Notre dame em Paris.

“ O cientismo -perspetiva de que a ciência pode explicar tudo, e que em última análise irá fazê-lo -não é o mesmo que a ciência. A física das partículas não pretende explicar os sistemas políticos; a química inorgânica não pretende explicar as qualidades da poesia romântica. A ciência é específica quanto ao seu tema-os seus estudos centram-se individualmente na estrutura fundamental da matéria, na evolução das espécies biológicas, na natureza das galáxias distantes, no desenvolvimento das vacinas contra as infeções virais. É uma empresa fortemente ciente de si, sempre orientada para o escrutínio a que os cientistas submetem o seu próprio trabalho, e os trabalhos alheios, muito antes de se aventurarem a publicá-los. O exemplo da ciência é genérico. (…)

Estas considerações obrigam-nos a confrontar os problemas -céticos, metodológicos e admonitórios – que dificultam a investigação, e se tornam mais claros com os recentes avanços dramáticos do conhecimento, precisamente devido à imensa ignorância que revelam. Identifico uma dúzia deles, e formulo-os onde for apropriado na discussão posterior. Dou-lhes as seguintes designações:

O problema do buraco da agulha. Todas as investigações têm como ponto de partida dados muito limitados e terrivelmente circunscritos a que temos acesso local no espaço e no tempo, e que nos dão, do nosso ponto de vista finito, uma perspetiva do universo e do passado como se fosse através do buraco de uma agulha, posicionado precisamente à nossa escala. Será que com os nossos métodos conseguimos ultrapassá-lo e ir além dele?

O problema da metáfora. Que metáforas e analogias se invoca para dar sentido ao que estas investigações nos dizem? Poderão ser enganadoras?

O problema do mapa. Qual é a relação entre as teorias e as realidades que constituem os seus objetos, dadas as diferenças análogas entre um mapa e o país que esse mapa representa?

O problema dos critérios. Quais são as justificações e, quando for necessário, as retificações para a aplicação de critérios como a “simplicidade”, a “otimalidade” e até a “beleza” e a “elegância”, na formulação de programas de investigação e na aprovação de resultados? Invocar estes “critérios extra teóricos” ajuda a investigação ou distorce-a?

O problema da verdade. Dado que a investigação empírica nos dá probabilidades refutáveis, quais são os padrões (como a escala sigma na ciência) tidos como satisfatórios, quase certos? Sugere isto que temos de tratar o conceito de verdade de maneira pragmática, como um objetivo da investigação (talvez inatingível) para o qual, no plano ideal, esta converge estrategicamente? Onde cabe aqui o conceito da própria “verdade”?

O problema de Ptolomeu. O modelo geocêntrico do Universo “funcionava” em vários aspetos, permitindo boa navegação nos oceanos e a previsão de eclipses, mostrando por isso que uma teoria pode ser eficaz em alguns aspetos, apesar de ser incorreta. Como evitar que sejamos enganados pela adequação pragmática?

O problema do martelo. Resumindo incisivamente como “se a nossa única ferramenta fosse um martelo, tudo parece um prego”, este problema recorda-nos que temos tendência para ver apenas o que os nossos métodos e equipamentos são capazes de revelar.

O problema do lampião. Procuramos as chaves que perdemos debaixo do lampião, à noite, porque é o único sítio em que conseguimos ver. Investigamos o que é acessível á investigação pela óbvia razão de não podermos ter acesso ao que é inacessível.

O problema da interferência. Investigar e observar pode afetar o que está a ser investigado e observado. Quando estudamos animais no meio selvagem, estamos a estudá-los como seriam caso não estivessem a ser observados, ou estamos a estudar comportamentos influenciados pela nossa observação? Daí que isto seja conhecido como “efeito do observador”. (…)

O problema da interpolação. Um problema sobretudo para a história  e as ciências psicológicas,  áreas nas quais as interpretações dos dados se fazem muitas vezes em fução de pressupostos que são próprios do tempo e da experiência dos investigadores. Conseguiremos defender-nos contra isto, quando é uma fonte de distorção?

O problema de Parménides. O perigo implícito do reducionismo; reduzir tudo a um único princípio último, causal ou explicativo, que à primeira vista parece o pior tipo de erro elementar, mas que, curiosamente, é uma das características das ciências rígidas.

E, por último, o problema do martelo. O desejo de chegar a uma conclusão, de ter uma explicação ou crónica completa. (…)

Estes problemas fazem alguns pensadores dizer que há coisas que nunca poderemos saber. Dizem, por exemplo, que as questões sobre a natureza da consciência nunca terão resposta, porque tentá-lo é como um olho que tenta ver-se a si próprio. (…)

Na verdade, é crucial apostar nas possibilidades ilimitadas do conhecimento; é isso que nos incentiva a procurar uma compreensão maior do Universo e de nós mesmos.”

A.C. Grayling, As fronteiras do conhecimento, 2021, Lx, Ed. 70, p.23,24,25

 

 Sendo estes e outros problemas inerentes à condição limitada do homem, seria de todo o interesse invocar a própria subjetividade do homem que investiga e daquele que incorpora os dados da investigação científica na sua vida. A esse propósito surgem inúmeros exemplos que manipulam esses dados de acordo com os seus interesses pessoais. Lembro a recente experiência coletiva da pandemia de COVID, como pessoas que consultam os médicos quando doentes, cumprindo de forma confiante os seus mandamentos, e que neste contexto, se recusavam a usar a máscara quando esta era prescrita, não por um médico, mas pela quase totalidade do corpo médico mundial. O que é verdadeiro quando transladado para o lado da subjetividade do homem de ciência que investiga e quando investiga. HS

 

 

 

2 comentários:

Marcelo Melo disse...

Extraordinária publicação.
Obrigado!

Helena Serrão disse...

Obrigada Marcelo Melo.