Patrick Zachmann, 15 de Abril 2019, Destruição pelo fogo da Catededral de Notre dame em Paris.
“ O cientismo -perspetiva de que a ciência pode explicar
tudo, e que em última análise irá fazê-lo -não é o mesmo que a ciência. A
física das partículas não pretende explicar os sistemas políticos; a química inorgânica
não pretende explicar as qualidades da poesia romântica. A ciência é específica
quanto ao seu tema-os seus estudos centram-se individualmente na estrutura
fundamental da matéria, na evolução das espécies biológicas, na natureza das
galáxias distantes, no desenvolvimento das vacinas contra as infeções virais. É
uma empresa fortemente ciente de si, sempre orientada para o escrutínio a que
os cientistas submetem o seu próprio trabalho, e os trabalhos alheios, muito
antes de se aventurarem a publicá-los. O exemplo da ciência é genérico. (…)
Estas considerações obrigam-nos a confrontar os problemas
-céticos, metodológicos e admonitórios – que dificultam a investigação, e se tornam
mais claros com os recentes avanços dramáticos do conhecimento, precisamente
devido à imensa ignorância que revelam. Identifico uma dúzia deles, e
formulo-os onde for apropriado na discussão posterior. Dou-lhes as seguintes
designações:
O problema do buraco da agulha. Todas as investigações têm
como ponto de partida dados muito limitados e terrivelmente circunscritos a que
temos acesso local no espaço e no tempo, e que nos dão, do nosso ponto de vista
finito, uma perspetiva do universo e do passado como se fosse através do buraco
de uma agulha, posicionado precisamente à nossa escala. Será que com os nossos
métodos conseguimos ultrapassá-lo e ir além dele?
O problema da metáfora. Que metáforas e analogias se invoca
para dar sentido ao que estas investigações nos dizem? Poderão ser enganadoras?
O problema do mapa. Qual é a relação entre as teorias e as realidades
que constituem os seus objetos, dadas as diferenças análogas entre um mapa e o
país que esse mapa representa?
O problema dos critérios. Quais são as justificações e,
quando for necessário, as retificações para a aplicação de critérios como a “simplicidade”,
a “otimalidade” e até a “beleza” e a “elegância”, na formulação de programas de
investigação e na aprovação de resultados? Invocar estes “critérios extra teóricos”
ajuda a investigação ou distorce-a?
O problema da verdade. Dado que a investigação empírica nos
dá probabilidades refutáveis, quais são os padrões (como a escala sigma na
ciência) tidos como satisfatórios, quase certos? Sugere isto que temos de
tratar o conceito de verdade de maneira pragmática, como um objetivo da
investigação (talvez inatingível) para o qual, no plano ideal, esta converge
estrategicamente? Onde cabe aqui o conceito da própria “verdade”?
O problema de Ptolomeu. O modelo geocêntrico do Universo “funcionava”
em vários aspetos, permitindo boa navegação nos oceanos e a previsão de
eclipses, mostrando por isso que uma teoria pode ser eficaz em alguns aspetos,
apesar de ser incorreta. Como evitar que sejamos enganados pela adequação
pragmática?
O problema do martelo. Resumindo incisivamente como “se a
nossa única ferramenta fosse um martelo, tudo parece um prego”, este problema
recorda-nos que temos tendência para ver apenas o que os nossos métodos e
equipamentos são capazes de revelar.
O problema do lampião. Procuramos as chaves que perdemos
debaixo do lampião, à noite, porque é o único sítio em que conseguimos ver.
Investigamos o que é acessível á investigação pela óbvia razão de não podermos
ter acesso ao que é inacessível.
O problema da interferência. Investigar e observar pode
afetar o que está a ser investigado e observado. Quando estudamos animais no
meio selvagem, estamos a estudá-los como seriam caso não estivessem a ser
observados, ou estamos a estudar comportamentos influenciados pela nossa
observação? Daí que isto seja conhecido como “efeito do observador”. (…)
O problema da interpolação. Um problema sobretudo para a
história e as ciências psicológicas, áreas nas quais as interpretações dos dados
se fazem muitas vezes em fução de pressupostos que são próprios do tempo e da
experiência dos investigadores. Conseguiremos defender-nos contra isto, quando
é uma fonte de distorção?
O problema de Parménides. O perigo implícito do
reducionismo; reduzir tudo a um único princípio último, causal ou explicativo,
que à primeira vista parece o pior tipo de erro elementar, mas que,
curiosamente, é uma das características das ciências rígidas.
E, por último, o problema do martelo. O desejo de chegar a
uma conclusão, de ter uma explicação ou crónica completa. (…)
Estes problemas fazem alguns pensadores dizer que há coisas
que nunca poderemos saber. Dizem, por exemplo, que as questões sobre a natureza
da consciência nunca terão resposta, porque tentá-lo é como um olho que tenta
ver-se a si próprio. (…)
Na verdade, é crucial apostar nas possibilidades ilimitadas
do conhecimento; é isso que nos incentiva a procurar uma compreensão maior do Universo
e de nós mesmos.”
A.C. Grayling, As fronteiras do conhecimento, 2021, Lx, Ed.
70, p.23,24,25
2 comentários:
Extraordinária publicação.
Obrigado!
Obrigada Marcelo Melo.
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