quinta-feira, outubro 05, 2023

Não há progresso das doutrinas filosóficas morais e políticas em direção à verdade.

 

 


Bieke Depoorter, Russia, 2009

“…Uma coisa é certa: exceto para aqueles que compreendem e até sentem o que é uma pergunta filosófica, e em que medida se distingue quer de uma pergunta empírica quer de uma pergunta formal (embora esta diferença não tenha de estar explicitamente presente ao espírito, e haja muitas perguntas que abrangem vários campos ou que estão no limite de algum ou de alguns deles) , as respostas - que, neste caso, são as principais doutrinas do Ocidente - poderão muito bem parecer fantasias intelectuais, especulações filosóficas sem fundamento na realidade, construções desprovidas  de qualquer relação com ações ou eventos.

Só quem for capaz de recriar em si, de alguma maneira, o estado de espírito dos homens atormentados pelas perguntas para as quais estas teorias pretendem ser soluções, ou pelo menos o estado de espírito daqueles que poderão aceitar tais soluções de forma acrítica, mas que, sem elas, mergulhariam num estado de insegurança e ansiedade – só esses serão capazes de compreender o papel que as teorias filosóficas, especialmente as doutrinas políticas, desempenharam na história, pelo menos no Ocidente. O trabalho dos lógicos e dos físicos foi rejeitado porque foi superado; mas é absurdo sugerir que rejeitemos as doutrinas políticas de Platão, a estética ou a ética de Kant por terem sido “superadas” a superficial assimilação dos dois casos.

Poderá objetar-se a esta linha argumentativa que, se consideramos que as doutrinas éticas e políticas do passado continuam a ser dignas de atenção, é porque fazem parte da nossa tradição cultural; ou seja, que se a filosofia grega e a ética bíblica não fossem elementos constitutivos da formação intelectual no Ocidente, já estariam tão distantes de nós como as primeiras especulações chinesas. Mas o único efeito desta objeção é fazer o argumento recuar um passo: é verdade que, se as características gerais da nossa experiência -, o mais provável  é que estas categorias do passado se tivessem alterado radicalmente – através de uma revolução do nosso conhecimento ou de qualquer reviravolta natural que alterasse as nossas reações -, o mais provável é que estas categorias do passado nos parecessem hoje tão obsoletas como as do Código de Hamurabi ou da epopeia de Gilgamesh. Se isso não aconteceu foi indubitavelmente, pelo menos em parte, porque a nossa experiência está organizada e “tingida” pelas categorias éticas e políticas que herdámos dos nossos antecessores, e que são lentes do passado pelas quais continuamos a olhar o mundo. Mas há muito que estas lentes nos teriam levado a tropeçar e a chocar com as coisas, tendo por isso de ser totalmente modificadas ou substituídas, como aconteceu com as lentes da biologia e da matemática, se não continuassem a desempenhar a sua função de forma mais ou menos adequada; o que significa que há um certo grau de continuidade em pelo menos dois milénios de consciência moral e política.

Isaiah Berlin, A busca do Ideal, 1973, Lx, Guerra e Paz, 2023, p.107,108

 Tradução de Maria José Figueiredo

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