quarta-feira, novembro 22, 2023

A racionalidade desenvolve-se na sua falência

 


Bruce Davidson, rapariga segurando gato, 1947

Não há razão alguma para se estudar filosofia — afirma Hume — salvo a de que, para certos temperamentos, é esta uma maneira agradável de passar o tempo. «Em todos os incidentes da vida, deveríamos, não obstante, conservar o nosso ceticismo. Se acreditamos que o fogo aquece ou que a água refresca, isto é só porque nos dá muito trabalho pensar de outra maneira. Mais ainda: se somos filósofos, deveríamos sê-lo baseados unicamente nestes princípios céticos, e pela inclinação que sentimos no sentido de dedicar-nos a isso.» Se ele abandonasse a especulação, «sinto que eu sairia perdendo quanto ao prazer; e nisto está a origem de minha filosofia». 

A filosofia de Hume, verdadeira ou falsa, é a falência da racionalidade do século XVIII. Como Locke, começa com a intenção de ser sensorial e empírico, sem confiar em nada, mas procurando toda o conhecimento que lhe fosse possível obter por experiência e observação. Mas, possuidor de um intelecto melhor que o de Locke, um poder mais agudo de análise e uma menor capacidade em aceitar inconsistências cómodas, chega à desastrosa conclusão de que experiência e a observação nada ensinam. A crença racional não existe: «Se acreditamos que o fogo aquece ou que a água refresca, isto é só porque nos custa muito trabalho pensar de outra maneira.» Não podemos deixar de crer, mas nenhuma crença pode basear-se na razão. Tampouco uma linha de conduta pode ser mais razoável que outra, já que todas elas são, igualmente, baseadas em convicções irracionais. (…)

Era inevitável que tal refutação da racionalidade fosse seguida de uma grande erupção de fé irracional. A disputa entre Hume e Rousseau é simbólica: Rousseau era louco, mas influente; Hume era são, mas não tinha adeptos. Os empiristas britânicos rejeitaram-lhe o ceticismo sem refutá-lo; Rousseau e seus adeptos concordavam com Hume em que nenhuma crença se baseia na razão, mas consideravam o coração superior à razão permitindo que este os levasse a convicções muito diferentes das que Hume conservava na prática. Os filósofos alemães, de Kant a Hegel, não assimilaram os argumentos de Hume. Digo-o deliberadamente, apesar da crença que muitos filósofos partilham com Kant, de que a sua Crítica da Razão Pura era uma resposta a Hume. Na verdade, estes filósofos — pelo menos Kant e Hegel — representam um tipo de racionalismo “pré-humeano” e podem ser refutados com argumentos “humeanos”. Os filósofos que não podem ser refutados desta maneira são aqueles que não pretendem ser racionais, tais como Rousseau, Schopenhauer e Nietzsche. O desenvolvimento do irracional durante o século XIX e o que passou para o século XX é uma consequência natural da destruição, por Hume, do empirismo.

 É importante, por conseguinte, descobrir se há alguma resposta a Hume dentro de uma filosofia que é total ou principalmente empírica. Se não, não há diferença intelectual alguma entre a sanidade e a loucura. O lunático que se julga um ovo escaldado será condenado unicamente por estar em minoria, ou antes — já que não devemos ter como certa a democracia — por o governo não concordar com ele. Este é um ponto de vista desesperado, e devemos esperar que haja algum meio de nos  livrarmos dele.


Bertrand Russell, História da Filosofia Ocidental (1946), Lx, Relógio D'Água (2017), p.550,551

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