quarta-feira, novembro 15, 2023

Aprender fazendo não pode ser o único modo de aprender, nem deve ser o mais aplicado.


 Fotografia: Diane Arbus, Miúdos dentro dum casaco, Nova Iorque, 1967

Sob a influência da psicologia moderna e das doutrinas pragmáticas, a pedagogia tornou-se uma ciência do ensino em geral ao ponto de se desligar completamente da matéria a ensinar. O professor – assim nos é explicado – é aquele que é capaz de ensinar qualquer coisa. A formação que recebe é em ensino e não no domínio de um assunto particular. (…) Porque o professor não tem necessidade de conhecer a sua própria disciplina, acontece frequentemente que ele sabe pouco mais do que os alunos. O que daqui decorre é que, não somente os alunos são abandonados aos seus próprios meios, como ao professor é retirada a fonte legítima da sua autoridade enquanto professor. Pense-se o que se pensar, o professor é ainda aquele que sabe mais e é mais competente. Em consequência, o professor não autoritário, aquele que contando com a autoridade que a sua competência lhe poderia conferir, quereria abster-se de todo o autoritarismo, deixa de poder existir.

Foi uma moderna teoria da aprendizagem que permitiu à pedagogia e às escolas normais desempenhar esse pernicioso papel na atual crise da educação. Essa teoria é, muito simplesmente, a aplicação lógica da nossa terceira ideia-base, ideia que foi durante séculos sustentada no mundo moderno e que encontrou a sua expressão conceptual sistemática no pragmatismo. Essa ideia-base é a de que não se pode saber e compreender senão aquilo que se faz por si próprio. 

A aplicação à educação desta ideia é tão primitiva quanto evidente: substituir, tanto quanto possível, o aprender pelo fazer. Considera-se pouco importante que o professor domine a sua disciplina porque se pretende compelir o professor ao exercício de uma atividade de constante aprendizagem para que, como se diz, não transmita um “saber morto” mas, ao contrário, demonstre constantemente esse saber. A intenção confessada não é de ensinar um saber mas a de inculcar um saber-fazer. (…)

Considera-se o jogo como o mais vivo modo de expressão e a maneira mais apropriada para a criança se conduzir no mundo, a única atividade que brota espontaneamente da sua existência de criança. Só aquilo que pode aprender através do jogo corresponde à sua vivacidade. Aprender, no velho sentido da palavra, forçando a criança a adotar uma atitude de passividade, obrigá-la-ia a abandonar a sua própria iniciativa que não se manifesta senão no jogo.

O ensino das línguas ilustra diretamente a estreita ligação entre estes dois pontos: a substituição do aprender pelo fazer e do trabalho pelo jogo. A criança deve aprender falando, quer dizer, fazendo, e não pelo estudo da gramática e da sintaxe. (…) é perfeitamente claro que este método procura deliberadamente manter a criança mais velha, tanto quanto possível, num nível infantil. Aquilo que, precisamente, deveria preparar a criança para o mundo dos adultos, o hábito adquirido pouco a pouco de trabalhar em vez de jogar, é suprimido em favor da autonomia do mundo da infância.

Qualquer que seja a ligação existente entre o fazer e o saber, ou qualquer que seja a validade da fórmula pragmática, a sua aplicação à educação, isto é, ao modo como a criança aprende, tende a fazer da infância um mundo absoluto. Também aqui, sob pretexto de respeitar a independência da criança, ela é excluída do mundo dos adultos para ser artificialmente mantida no seu, tanto quanto este pode ser designado um mundo.”

Hannah Arendt, Entre o passado e o futuro (1954/1968), A Crise na educação, Lx, Relógio D’Água, 2006, p.192,193,194.

«The crisis in Education» foi pela primeira vez publicado na Partisan Review, 25, 4 (1957),

Arendt escreveu este texto em 1957 na América, eu comecei a dar aulas trinta anos depois. Será atual? As inovações em educação são um contínuo rio que nela desagua, atualidade na era da internet é uma submersão, tão pouco a podemos entender como tal, as chamadas "tecnologias digitais" , o rio  que corre, sempre no momento seguinte, são também exemplo perfeito desta filosofia pragmática do jogo na aprendizagem, do fazer autónomo dos alunos. Mas será essa autonomia verdadeiramente  desenvolvida com este tipo de pedagogia? Refiro-me aos programas digitais, com tutoriais de aprendizagem onde os alunos vão passando etapas até ao resultado final, como se jogassem um jogo de Geografia ou de outra disciplina. No jornal Expresso, desta sexta, dia 10 de Novembro, havia um artigo sobre ocorrências recentes no ensino universitário. Os professores universitários queixavam-se de receber comunicações dos pais dos alunos a exigirem explicação pelas notas dos seus filhos, como se ainda fossem os responsáveis pela educação de homens e mulheres de 20 anos. Infantilização. Sabe-se também que os alunos não prestam atenção nas aulas e que os computadores sempre acesos são muitas vezes um bom pretexto para estar a jogar enquanto o professor ensina. Como professora do ensino secundário defronto-me com esse problema mas, vamos… os alunos são obrigados a estar nas aulas, são adolescentes... mas a metáfora do rio está de novo a adaptar-se aqui, deixamos fluir, e os alunos transportam os mesmos comportamentos de indisciplina, e de desinteresse para todo o lado onde se deparem com algo mais difícil ou "secante". Se nunca proibirmos esses comportamentos, consentimos, e se consentimos agora, esses procedimentos instalam-se, mesmo quando os alunos são adultos, continuando nesse estado de permissividade da iniciativa infantil que, em jovens adultos, é anacrónica e contraproducente. HS

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