quarta-feira, dezembro 20, 2023

A experiência está ligada à consciência dos limites

 


Foto: Peter Van Agtmael, 2014, Dois homens a aquecem-se ao fogo na destruída Shujai'ilya em Gaza.


Se quiséssemos acrescentar também algum testemunho para este terceiro momento da essência da experiência, o mais indicado seria certamente Esquilo. Ele encontrou a fórmula, ou melhor, reconheceu o seu significado metafísico, fórmula que expressa a historicidade interna da experiência: aprender pelo sofrer. Esta fórmula não significa somente que nos tornamos inteligentes através do dano e que somente no engano e na deceção chegamos a conhecer mais adequadamente as coisas. Assim compreendida a fórmula deveria ser tão velha como a própria experiência humana. Porém Esquilo pensa mais que isso. Refere-se à razão pela qual isto é assim. O que o homem deve aprender pelo sofrer não é isto ou aquilo, mas a perceção dos limites de ser homem, a compreensão de que as barreiras que nos separam do divino não podem ser superadas. No último extremo, é um conhecimento religioso - aquele conhecimento a partir donde se dá a origem da tragédia grega. Experiência é, pois, experiência da finitude humana. É experimentado, no autêntico sentido da palavra, aquele que é consciente desta limitação, aquele que sabe que não é senhor do tempo nem do futuro. O homem experimentado, propriamente, conhece os limites de toda previsão e a insegurança de todo plano. Nele consuma-se o valor de verdade da experiência. Se em cada fase do processo da experiência adquire uma nova abertura para novas experiências, isto valerá tanto mais para a ideia de uma experiência consumada. Nela a experiência não chega ao seu fim, nem se alcança uma forma suprema de saber (Hegel), mas é onde, na verdade, a experiência está presente por inteiro e no sentido mais autêntico. Chega ao limite absoluto todo dogmatismo nascido da volátil possessão pelo desejo do ânimo humano. A experiência ensina a reconhecer o que é real. Conhecer o que é, vem a ser, pois, o autêntico resultado de toda experiência e de todo querer saber em geral. Mas o que não é, neste caso, isto ou aquilo, "mas o que já não pode ser revogado" (Ranke). A verdadeira experiência é aquela na qual o homem se torna consciente da sua finitude. Nela, o poder fazer e a autoconsciência de uma razão planificadora encontra seu limite. Mostra-se como pura ficção a ideia de que se pode fazer marcha atrás de tudo, de que há sempre tempo para tudo e de que, de um modo ou de outro, tudo retorna. Quem está e atua na história faz constantemente a experiência de que nada retorna. Reconhecer o que é não quer dizer aqui conhecer o que há num momento, mas perceber os limites dentro dos quais ainda há possibilidade de futuro para as expectativas e os planos: ou, mais fundamentalmente, que toda expectativa e toda planificação dos seres finitos é, por sua vez finita e limitada.

Hans-Georg Gadamer, Verdade e Método, , Rio de Janeiro, Editora Vozes, 1986, pag.525 e 526

Tradução de Flávio Paulo Meurer, com adaptações,

 A historicidade da experiência, retoma a velha controvérsia da natureza das leis científicas que ultrapassam o caracter particular e histórico da experiência e se inscrevem  num horizonte de universalidade e intemporalidade. Todo o conhecimento está ligado à reflexão sobre a finitude humana, a partir sobretudo da revolução moderna, da produção do conhecimento de um sujeito historicamente limitado. Embora para Descartes esse sujeito pudesse ser encarado como uma razão descarnada, um sujeito ideal, nenhum sujeito do conhecimento pode ser uma razão descarnada e lógica, ideal que as gerações seguintes se apressaram a desmentir. Poderemos ver o mesmo afã de uma racionalidade crítica imparcial na epistemologia de  Popper, estritamente ligada à lógica da seleção das teorias e à racionalidade do processo, mas ninguém fica convencido que os cientistas, na sua investigação, sejam preferencialmente atentos à falsificação das suas teorias, tão pouco se estas são falsificadas por outras mais abrangentes ou explicativas. Todavia, o que me parece extraordinário no conhecimento científico e que supera esta contínua dúvida que muitos exageram para denegrir o papel da ciência, concluindo, que se nada é certo então é tudo falso, numa lógica maniqueísta perigosa e alucinada, é a capacidade que a ciência tem de reajustar, superar, testar os seus resultados servindo-se de uma linguagem que todos podem usar se assim forem ensinados. Trata-se de uma matéria que pode ser avaliada com algum rigor e reformulada e melhorada segundo critérios estabelecidos e ajustados pela comunidade. A noção de uma linguagem comum e de comunidade é o tópico que pode ultrapassar a questão da finitude como um trabalho em contínuo como um fazer-se. HS

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