“À medida que a criança cresce e corta os laços primários, vai desenvolvendo uma busca de liberdade e independência. Mas o fim desta busca só pode ser entendido se entendermos o carácter dialético deste processo de individuação crescente.
Este processo tem dois aspetos: um é o de que a criança se torna
mais forte dos pontos de vista físico, emocional e mental. (…) Os limites do
crescimento da individuação e do eu são estabelecidos, em parte, por condições
individuais, mas essencialmente por condições sociais. Isto porque, embora as
diferenças entre os indivíduos, a este respeito, pareçam ser grandes, cada
sociedade é caracterizada por um certo nível de individuação que o indivíduo
não pode superar.
O outro aspeto do processo de individuação é a solidão crescente.
Os laços primários oferecem segurança e unidade básica com o mundo que nos é
exterior. À medida que a criança emerge deste mundo, torna-se consciente de
estar sozinha, de ser uma entidade separada de todas as outras. Esta separação
de um mundo que, em comparação com a nossa própria existência individual, é
esmagadoramente forte e poderoso, muitas vezes ameaçador e perigoso, cria um
sentimento de impotência e ansiedade. Enquanto somos parte integral desse
mundo, inconscientes das possibilidades e responsabilidades da ação individual,
não há necessidade de o temer. Quando nos tornamos indivíduos, ficamos sozinhos
e enfrentamos o mundo em todos os seus aspetos perigosos e esmagadores.
Surgem impulsos de renúncia à nossa individualidade, de superação
do sentimento de solidão e de impotência, submergindo completamente no mundo
exterior. Ora, estes impulsos e os novos laços que deles surgem não são idênticos
aos laços primários que foram cortados no próprio processo de crescimento. Da
mesma maneira que uma criança nunca pode regressar fisicamente ao útero da mãe,
nunca pode inverter fisicamente o processo de individuação. Os esforços para o
fazer adquirem necessariamente o carácter de submissão, em que a contradição
básica entre a autoridade e a criança que se lhe submete nunca é eliminada.
Conscientemente, a criança pode sentir-se segura e satisfeita, mas,
inconscientemente, percebe que o preço a pagar é a renúncia à força e integridade
do seu eu. Assim, o resultado da submissão é exatamente o oposto do que devia
ser: a submissão aumenta a insegurança da criança e, ao mesmo tempo, gera
hostilidade e rebeldia, que são mais assustadoras, porque se dirigem contra as
mesmas pessoas relativamente às quais a criança permaneceu – ou se tornou –
dependente.
(…) Também em termos filogenéticos, a história do homem pode ser
caracterizada como um processo de crescente individuação e de crescente
liberdade. O homem emerge do estádio pré-humano ao dar os primeiros paços na
direção da libertação dos instintos coercivos. (…) De todos, o homem é o animal
mais desamparado ao nascer. A sua adaptação à natureza baseia-se essencialmente
no processo de aprendizagem e não na determinação instintiva. O instinto é uma
categoria que diminui e até desaparece nas formas animais superiores, em
especial no ser humano.
A existência humana começa quando a falta de fixação da ação pelos
instintos supera um certo ponto; quando a adaptação à natureza perde o seu
carácter coercivo, quando a maneira de agir já não é determinada por mecanismos
herdados. Por outras palavras, a existência humana e a liberdade são
inseparáveis."
Erich Fromm, O medo da liberdade, (1941), Lx, Edições 70, 2023,
p.p 45 a 48.
A questão da liberdade como hoje a colocamos quando falamos no 25 de Abril, ganha protagonismo com a revolução francesa, "Liberté, Fraternité, Egalité" é a chave das novas Repúblicas, uma nova forma de entender os indivíduos e as sociedades, de entender o que interessa preservar ou conquistar. Aqui a Liberdade dá-se como um grito de revolta contra uma tirania política e social que impedia vários direitos, entre os quais o direito à liberdade de escolha política, religiosa, sexual, cultural, económica. Centra-se essa liberdade no direito que cada indivíduo tem de escolher, o poder do indivíduo inserido num coletivo, porque o poder é do coletivo, politicamente falando. A questão é de desviar a atenção deste pormenor, cada indivíduo é um poder, no sentido que pode escolher, mas as sociedades só mudam e os direitos só prevalecem se individualmente formos capazes de deixar as nossas singularidades e escolhermos um projeto coletivo, penso que hoje, em Portugal, estamos só centrados nas liberdades individuais e descurámos o coletivo, e só o coletivo, as sociedades e as políticas podem garantir esses direitos. 50 anos depois, o fervor da liberdade continua como uma ideia bonita e definitivamente enraizada no nosso imaginário mas, sem uma vivência efetiva. A possibilidade de escolha é angustiante, dá-nos mais paz uma autoridade que decida por nós, alguém em quem confiar enfim, voltar ao ventre materno. Ora, a democracia atual e o atual estado político nega-nos esse conforto, não há paizinhos protetores, nem úteros maternos onde fechar os olhos e deixar-se levar, a democracia exige vivência da liberdade e isso causa um medo imenso, a verdade é que não sabemos o que escolher, e não pensamos muito sobre isso, nem perdemos muito tempo, passa-se o mesmo com todos os problemas da participação, nas assembleias camarárias, nos grupos de café, em qualquer sítio onde se possa discutir a política, se tenha poder decisório de uma voz pública. O medo da liberdade não é só um sintoma psicológico de não querer crescer, pois esse faz parte das dores do crescimento, é sobretudo uma conjuntura social alienante que identifica liberdade com saída com amigos, correr e viajar, isto é com a fuga da intervenção e responsabilidade política. O medo da liberdade é proporcional ao nosso desdém pela política, como se pudesse ter havido liberdades sem um coletivo onde cada um se revia em todos, ou seja num espírito político. HS