quarta-feira, março 27, 2024

O medo da liberdade

 




Eduardo Gageiro, 25 de Abril 1974

“À medida que a criança cresce e corta os laços primários, vai desenvolvendo uma busca de liberdade e independência. Mas o fim desta busca só pode ser entendido se entendermos o carácter dialético deste processo de individuação crescente.

Este processo tem dois aspetos: um é o de que a criança se torna mais forte dos pontos de vista físico, emocional e mental. (…) Os limites do crescimento da individuação e do eu são estabelecidos, em parte, por condições individuais, mas essencialmente por condições sociais. Isto porque, embora as diferenças entre os indivíduos, a este respeito, pareçam ser grandes, cada sociedade é caracterizada por um certo nível de individuação que o indivíduo não pode superar.

O outro aspeto do processo de individuação é a solidão crescente. Os laços primários oferecem segurança e unidade básica com o mundo que nos é exterior. À medida que a criança emerge deste mundo, torna-se consciente de estar sozinha, de ser uma entidade separada de todas as outras. Esta separação de um mundo que, em comparação com a nossa própria existência individual, é esmagadoramente forte e poderoso, muitas vezes ameaçador e perigoso, cria um sentimento de impotência e ansiedade. Enquanto somos parte integral desse mundo, inconscientes das possibilidades e responsabilidades da ação individual, não há necessidade de o temer. Quando nos tornamos indivíduos, ficamos sozinhos e enfrentamos o mundo em todos os seus aspetos perigosos e esmagadores.

Surgem impulsos de renúncia à nossa individualidade, de superação do sentimento de solidão e de impotência, submergindo completamente no mundo exterior. Ora, estes impulsos e os novos laços que deles surgem não são idênticos aos laços primários que foram cortados no próprio processo de crescimento. Da mesma maneira que uma criança nunca pode regressar fisicamente ao útero da mãe, nunca pode inverter fisicamente o processo de individuação. Os esforços para o fazer adquirem necessariamente o carácter de submissão, em que a contradição básica entre a autoridade e a criança que se lhe submete nunca é eliminada. Conscientemente, a criança pode sentir-se segura e satisfeita, mas, inconscientemente, percebe que o preço a pagar é a renúncia à força e integridade do seu eu. Assim, o resultado da submissão é exatamente o oposto do que devia ser: a submissão aumenta a insegurança da criança e, ao mesmo tempo, gera hostilidade e rebeldia, que são mais assustadoras, porque se dirigem contra as mesmas pessoas relativamente às quais a criança permaneceu – ou se tornou – dependente.

(…) Também em termos filogenéticos, a história do homem pode ser caracterizada como um processo de crescente individuação e de crescente liberdade. O homem emerge do estádio pré-humano ao dar os primeiros paços na direção da libertação dos instintos coercivos. (…) De todos, o homem é o animal mais desamparado ao nascer. A sua adaptação à natureza baseia-se essencialmente no processo de aprendizagem e não na determinação instintiva. O instinto é uma categoria que diminui e até desaparece nas formas animais superiores, em especial no ser humano.

A existência humana começa quando a falta de fixação da ação pelos instintos supera um certo ponto; quando a adaptação à natureza perde o seu carácter coercivo, quando a maneira de agir já não é determinada por mecanismos herdados. Por outras palavras, a existência humana e a liberdade são inseparáveis."

Erich Fromm, O medo da liberdade, (1941), Lx, Edições 70, 2023, p.p 45 a 48.


A questão da liberdade como hoje a colocamos quando falamos no 25 de Abril, ganha protagonismo com a revolução francesa, "Liberté, Fraternité, Egalité" é a chave das novas Repúblicas, uma nova forma de entender os indivíduos e as sociedades, de entender o que interessa preservar ou conquistar. Aqui a Liberdade dá-se como um grito de revolta contra uma tirania política e social que impedia vários direitos, entre os quais o direito à liberdade de escolha política, religiosa, sexual, cultural, económica. Centra-se essa liberdade no direito que cada indivíduo tem de escolher, o poder do indivíduo inserido num coletivo, porque o poder é do coletivo, politicamente falando. A questão é de desviar a atenção deste pormenor, cada indivíduo é um poder, no sentido que pode escolher, mas as sociedades só mudam e os direitos só prevalecem se individualmente formos capazes de deixar as nossas singularidades e escolhermos um projeto coletivo, penso que hoje, em Portugal, estamos só centrados nas liberdades individuais e descurámos o coletivo, e só o coletivo, as sociedades e as políticas podem garantir esses direitos.  50 anos depois, o fervor da liberdade continua como uma ideia bonita e definitivamente enraizada no nosso imaginário mas, sem uma vivência efetiva. A possibilidade de escolha é angustiante, dá-nos mais paz uma autoridade que decida por nós, alguém em quem confiar enfim, voltar ao ventre materno. Ora, a democracia atual e o atual estado político nega-nos esse conforto, não há paizinhos protetores, nem úteros maternos onde fechar os olhos e deixar-se levar, a democracia exige vivência da liberdade e isso causa um medo imenso, a verdade é que não sabemos o que escolher, e não pensamos muito sobre isso, nem perdemos muito tempo, passa-se o mesmo com todos os problemas da participação, nas assembleias camarárias, nos grupos de café, em qualquer sítio onde se possa discutir a política, se tenha poder decisório de uma voz pública. O medo da liberdade não é só um sintoma psicológico de não querer crescer, pois esse faz parte das dores do crescimento, é sobretudo uma conjuntura social alienante que identifica liberdade com saída com amigos, correr e viajar, isto é com a fuga da intervenção e responsabilidade política. O medo da liberdade é proporcional ao nosso desdém pela política, como se pudesse ter havido liberdades sem um coletivo onde cada um se revia em todos, ou seja num espírito político. HS

quinta-feira, março 21, 2024

Filosofia

 



Construo o pensamento aos pedaços: cada
ideia que ponho em cima da mesa é uma parte do
que penso; e, ao ver como cada fragmento se
torna um todo, volto a parti-lo, para evitar
conclusões.


"A pura inscrição do amor", pág. 42 | Publicações Dom Quixote, 1ª. edição. Jan. 2018


Nuno Júdice 29 de abril de 1949/ 17 de março de 2024

sexta-feira, março 08, 2024

O imprevisto como um dos motores da ciência

 


Matt Black, Um fazendeiro revê os seus sistemas de rega, Georgia, EUA, 2017

Na ciência, (…) a novidade somente emerge com dificuldade (dificuldade que se manifesta através de uma resistência) contra um pano de fundo fornecido pelas expectativas. Inicialmente experimentamos somente o que é habitual e previsto, mesmo em circunstâncias nas quais mais tarde se observará uma anomalia. Contudo, uma maior familiaridade dá origem à consciência de uma anomalia ou permite relacionar o facto a algo que anteriormente não ocorreu conforme o previsto. Essa consciência da anomalia inaugura um período no qual as categorias conceptuais são adaptadas até que o que inicialmente era considerado anómalo se converta no previsto. Nesse momento completa-se a descoberta. Já insisti anteriormente sobre o fato de que esse processo (ou um muito semelhante) intervém na emergência de todas as novidades científicas fundamentais Gostaria agora de assinalar que, reconhecendo esse processo, podemos facilmente começar a perceber por é que a ciência normal — um empreendimento não dirigido para as novidades e que a princípio tende a suprimi-las — pode, não obstante, ser tão eficaz a provocá-las.

No desenvolvimento de qualquer ciência, admite-se habitualmente que o primeiro paradigma explica com bastante sucesso a maior parte das observações e experiências facilmente acessíveis aos praticantes daquela ciência. Em consequência, um desenvolvimento posterior requer geralmente, a construção de um equipamento elaborado, o desenvolvimento de um vocabulário e técnicas esotéricas, além de um refinamento de conceitos que se assemelham cada vez menos com os protótipos habituais do senso comum. Por um lado, essa profissionalização leva a uma imensa restrição da visão do cientista e a uma resistência considerável à mudança de paradigma. A ciência torna-se sempre mais rígida. Por outro lado, dentro das áreas para as quais o paradigma chama a atenção do grupo, a ciência normal conduz a uma informação detalhada e a uma precisão da integração entre a observação e a teoria que não poderia ser atingida de outra maneira. Além disso, esse detalhe e precisão da integração possuem um valor que transcende o seu interesse intrínseco, nem sempre muito grande. Sem os instrumentos especiais, construídos sobretudo para fins previamente estabelecidos, os resultados que conduzem às Mesmo quando os instrumentos especializados existem, a novidade normalmente emerge apenas para aquele que, sabendo com precisão o que deveria esperar, é capaz de reconhecer que algo está errado. A anomalia aparece somente contra o pano de fundo proporcionado pelo paradigma. Quanto maiores forem a precisão e o alcance de um paradigma, tanto mais sensível este será como indicador de anomalias e, consequentemente de ocasiões para a mudança de paradigma. No processo normal de descoberta, até mesmo a mudança tem uma utilidade que será mais amplamente explorada no próximo capítulo. Ao assegurar que o paradigma não, será facilmente abandonado, a resistência garante que os cientistas não serão perturbados sem razão.

Thomas Kuhn, A estrutura das revoluções científicas, (1962), S. Paulo, Editora Perspectivas,1998, p.90,91,92