segunda-feira, março 23, 2009


DEUS E O SENTIDO DA VIDA I
(ENTRE A ESCRAVIDÃO E A INSIGNIFICÂNCIA?)

As questões sobre o sentido e o propósito [da vida] nem sempre perturbaram as pessoas como acontece hoje. Numa era religiosa estas questões eram deixadas ao cuidado de um sábio Criador. Este Criador, acreditava-se, fez o mundo, e tudo o que nele existe, com um propósito. O Homem, e cada homem individual, era parte de um grande desígnio. Além disso, o homem ocupava um lugar de especial importância nesse desígnio, tendo sido feito ‘à imagem de Deus’ por um acto especial de criação. Foi-lhe dado o poder da razão que o colocou acima dos animais. Além disso, foi dotado, ao contrário destes últimos, de uma alma imortal. Isto significava que a morte não era o fim da vida de uma pessoa, mas apenas uma passagem para outra forma de existência superior, de acordo com o propósito de Deus. A terra e todas as suas criaturas foram dadas ao homem. Neste grande plano, a existência delas está ao serviço dos humanos. O lugar onde os humanos habitam, a terra, ocupava um lugar central no cosmos, tendo o sol e os outros corpos celestes sido criados para seu benefício.

O que resta destas crenças hoje? Hoje acreditamos que a terra é um planeta menor circulando em torno do sol, ele próprio uma estrela indistinta, uma entre um vasto número de estrelas pertencentes a uma galáxia que, por sua vez, faz parte de um conjunto inumerável ou mesmo infinito de galáxias. Este planeta menor apareceu devido a uma explosão casual de materiais cósmicos, sofreu vários processos químicos e continuará a existir e a ser uma casa onde se pode viver até que as condições voltem a mudar, quem sabe se devido a uma pequena mudança da temperatura do sol. É-nos dito que a vida surgiu provavelmente de uma combinação química acidental e que há razões para pensar que as mesmas condições possam surgir, ou tenham surgido, noutra parte do universo. A teoria da selecção natural diz-nos que a espécie humana não existe por um acto especial de Deus. Em vez disso, é o resultado de um processo de selecção cego decorrente da luta pela sobrevivência, tendo evoluído por pequenos passos imperceptíveis a partir de criaturas semelhantes a macacos, sendo o chimpanzé moderno um primo próximo. Os psicólogos dizem-nos que o pensamento e acção humanas são em larga medida determinados por processos obscuros inconscientes e não pela luz da razão. Além disso, apesar de ser válido que o homem detém poderes de discurso e de raciocínio especiais, está longe de ser claro que devamos considerar estes poderes mais especiais que estes ou aqueles poderes notáveis característicos de outros animais. Não há razão para pensar que o homem é melhor ou ‘superior’ e, olhando para as suas actividades destruidoras, até seria razoável fazer o juízo oposto.

E que dizer da crença no plano de Deus e também da vida após a morte? Há ainda muita gente que defende estas ideias. Trata-se, no entanto, de uma minoria, pelo menos no mundo ocidental. Mesmo os crentes religiosos, cercados por uma cultura secular, não se sentem confortáveis com as perspectivas religiosas sobre o sentido e propósito como antigamente.

As concepções modernas do homem e do mundo não resultam meramente da substituição de uma explicação ou teoria por uma outra. Houve uma mudança no próprio conceito de explicação e quanto ao que uma explicação deve ser. Antes pensava-se que o único tipo de explicação real ou realmente satisfatória teria de referir-se a um propósito. Explicar-se-ia um fenómeno dizendo para que servia, qual o propósito que lhe dava um homem, animal ou Deus. Havia também a explicação causal que se referia ao que precedeu o fenómeno, mas este tipo de explicação era entendido como incompleto e inferior. Era apenas com o outro tipo que podíamos obter uma compreensão real. Nos tempos modernos, porém, e especialmente desde a época de Hume, a explicação causal suplantou largamente o outro tipo, o tipo teleológico. As teorias científicas modernas não são expressas em termos teleológicos e as modernas leis da natureza não são acerca de fins e de propósitos, mas acerca de regularidades observadas no mundo. Explicamos porque acontece algo, não olhando para a frente em direcção a um fim ou objectivo, mas olhando para trás para uma causa antecedente.

Num certo sentido, estas explicações são menos satisfatórias do que as explicações teleológicas. A explicação que faz referência às leis da natureza diz, com efeito, que um acontecimento ou sequência de acontecimentos ocorre porque as coisas sempre assim ocorrem. Porém, isto é apenas ligar um facto bruto (um facto particular) a outro (uma regularidade geral). Nesse sentido, diz-se muitas vezes que a ciência moderna é, no fim de contas, meramente descritiva. Diz-nos como acontecem as coisas e não porquê. Uma explicação teleológica, ao invés, dá sentido e significado ao acontecimento. Isto é particularmente claro no caso de uma acção humana consciente, na qual a percepção do significado da acção pode ser dado pelo agente em termos do propósito deste ou desta. Se este tipo de explicação pudesse ser aplicado aos fenómenos naturais em geral, também eles teriam este género de significado. Mas, como já disse, este modo de explicar foi largamente abandonado em favor do outro tipo de explicação, ‘sem sentido’, que se mostrou mais frutuoso em outros aspectos.

Qual o impacte destas mudanças na nossa concepção de nós mesmos? ‘Poderia argumentar-se, escreve Kurt Baier, que quanto mais claramente compreendemos as explicações dadas pela ciência, mais somos levados para a conclusão de que a vida humana não tem um propósito e, portanto, um sentido’. Baier rejeita esta conclusão. Nota que no sentido habitual de ‘propósito’, as vidas humanas não estão menos ligadas a um propósito do que estavam antes. Continuamos a viver grande parte das nossas vidas perseguindo objectivos de um tipo ou de outro. A questão ‘Porque estás a fazer isso?’, ou seja, ‘Qual o teu propósito?’, continua a ser posta tanto quanto o era antes e uma resposta satisfatória pode ser dada em muitos casos. É verdade que algumas pessoas vivem as suas vidas com menos rumo do que outras, mas também neste caso sempre assim foi e nada tem a ver com os desenvolvimentos científicos e com a moderna concepção do lugar do homem no mundo. De facto, segundo Baier, ‘A ciência não só não nos roubou nenhum propósito que tínhamos antes, mas apetrechou-nos com um poder muito maior para atingir estes propósitos’.

Baier distingue ainda um uso secundário de ‘propósito’, aplicado a coisas e não a pessoas, como quando perguntamos ‘Qual o propósito daquele aparelho que instalaste na oficina?’ Neste caso, não estamos a dizer que o objecto é motivado por um propósito. A ideia é antes a de que lhe é dado um propósito, o propósito da pessoa que o fez ou instalou. É este sentido de propósito diminuído pela perspectiva científica? Não. Continuamos a fazer todo o género de coisas destinadas a cumprir um propósito dizendo, neste sentido, que ‘têm um propósito’.

Mas o que dizer do homem? Pode dizer-se que o homem, na perspectiva religiosa, cumpre um propósito, em vez de perseguir propósitos por si. E esta atribuição de propósito, esta resposta à questão sobre o propósito da vida, fica fora do nosso alcance uma vez abandonada a perspectiva religiosa. Para Baier, porém, esta resposta sempre foi desprovida de valor. ‘Atribuir a um ser humano um propósito neste sentido... é ofensivo. É degradante para um homem ser visto como algo que cumpre um propósito’. Ao tratar um homem dessa forma, diz Baier, ‘reduzi-lo-íamos ao nível do utensílio, do animal doméstico ou talvez do escravo, tratá-lo-íamos, como na frase de Kant, meramente como um meio para os nossos fins, não como um fim em si mesmo’.

Estas observações são verdadeiras e importantes. São elas relevantes? Se nós tratarmos seres humanos dessa maneira, como ‘cumprindo um propósito’, não os trataremos com o devido respeito e o nosso tratamento seria moralmente ofensivo. Mas daqui não se segue que os seres humanos seriam degradados por servir o plano de Deus, que Ele os degrada ao tratá-los dessa forma ou ao criá-los para o Seu propósito. Uma observação similar pode ser feita acerca da relação entre homens e animais. A maior parte das pessoas diria que não é degradante para um animal o ser usado para um propósito. Por exemplo, se alguém compra um cão para desencorajar os ladrões, isto não seria moralmente degradante ou ofensivo. 

Os crentes religiosos não são, e não precisam de se sentir, ofendidos pela ideia de que existem para cumprir um propósito de um ser superior. Podem também afirmar que isto dá às suas vidas o tipo de propósito e sentido que a perspectiva científica só por si lhes não poderia dar.

As observações de Baier acerca do papel permanente e, na verdade, inevitável da existência de um propósito nas nossas vidas não nos ajudam também quanto ao sentimento de insignificância que resulta da revolução científica. Ficamos chocados quando tomamos conhecimento destes factos sobre a situação humana no espaço e no tempo e ficámos chocados quando estas ideias foram introduzidas pela primeira vez. Segue-se delas que as nossas vidas são realmente sem sentido? É claro que não há um silogismo que procede de premissas acerca de cosmologia ou da selecção natural para a conclusão de que a nossa vida é desprovida de sentido. E deve notar-se, como faz Baier, que há critérios independentes de questões de cosmologia ou de história natural que podem ser usados para descrever uma vida humana quer como plena de sentido quer como desprovida dele.

No entanto, a imagem científica priva-nos de sentido numa acepção diferente. Há uma conexão entre sentido e importância e se a imagem científica é correcta, não temos a importância que pensávamos ter. Esta conexão entre sentido e importância está reflectida no uso da palavra ‘insignificante’. Algo que não tem importância pode ser descrito como insignificante ou (nessa acepção) sem sentido. Podemos entender desta maneira o veredicto de Macbeth ‘a vida não é mais do que uma sombra em movimento ... que nada significa’.

Oswald Hanfling, The Quest For Meaning (Oxford, 1987), pp. 42-46. Tradução de Carlos Marques.

domingo, março 22, 2009

























PARADIGMAS, ANOMALIAS, REVOLUÇÕES E INCOMENSURABILIDADES

[Thomas] Kuhn (...) numa obra que mesmo fora da filosofia da ciência exerceu enorme influência, insistiu na ideia de que as revoluções científicas são marcadas por rupturas abruptas e dramáticas, nas quais há não apenas uma mudança de teorias, mas também mudança quanto ao que se entende por ‘facto’ e até quanto à metodologia científica. O título do livro mais famoso de Kuhn, A Estrutura das Revoluções Científicas, põe em destaque o aspecto central: quando um campo científico particular – a Física, a Psicologia, a Microbiologia, ou qualquer outro – se torna suficientemente organizado de modo a haver um consenso alargado sobre quais os seus problemas centrais, como devem estes ser enfrentados, o que pode ser considerada uma solução para os mesmos e assim por diante, pode ser descrito como tendo aderido a um certo ‘paradigma’ ou ‘matriz disciplinar’. É isto que, por assim dizer, impõe as regras do jogo, no sentido acima referido de determinar os problemas centrais da área, a metodologia a ser usada quando esses problemas são avaliados, os critérios para determinar se os problemas foram resolvidos e assim por diante. Aqueles que começam a trabalhar na área são formados dentro do paradigma por intermédio da educação e treino que recebem e aquilo que Kuhn chama ‘ciência normal’ centra-se principalmente na resolução de problemas dentro dos limites do paradigma ou matriz disciplinar.

Aqueles problemas que não podem solucionar-se no quadro do paradigma são postos de lado como anomalias. Gradualmente essas anomalias vão-se acumulando até que alguém – tipicamente um cientista jovem com pouco a perder! – declara que o velho paradigma entrou em bancarrota, empenhando-se na construção de um novo. Tipicamente, insiste Kuhn, para resolver as anomalias precisamos não apenas de uma nova teoria, mas de uma nova maneira de operar, de tal modo que aquilo que no velho paradigma se consideravam factos a precisar de explicação deixa de ter interesse no novo paradigma. Consideremos a transição da física aristotélica para a newtoniana. De acordo com a primeira, quando uma força é exercida sobre um objecto temos de explicar porque é que ele continua a mover-se (ignorando-se a fricção e a resistência do ar). Isso dá origem a teorias segundo as quais os objectos em movimento estão, por assim dizer, continuamente a ser empurrados por detrás. Segundo Newton, no entanto, não é preciso qualquer justificação para o facto de um objecto continuar em movimento uma vez posto nesse estado. O que tem de se explicar são as mudanças nesse movimento pelo efeito de alguma força. Além disso, sendo o quadro tão diferente – uma vez que o que conta como facto, aquilo que é preciso explicar, etc., mudou com o novo paradigma - não podemos de forma alguma comparar o novo e o velho paradigmas. Estes são, de acordo com Kuhn, ‘incomensuráveis’, pois não há uma base comum de comparação.

Trata-se de uma posição bastante radical, uma posição que parece minar a própria base do progresso científico, qualquer que seja o significado dado a esta ideia. Na verdade, havendo duas teorias separadas por uma revolução, como se pode dizer que houve progresso de uma para a outra, sendo que não há um quadro comum nos termos do qual as duas teorias possam ser comparadas? O próprio Kuhn recuou desta posição na última edição do seu livro, sugerindo que medidas comparativas normais, tais como a simplicidade, o suporte empírico, etc., podiam ainda assim ser aplicadas, embora tenha mantido as suas dúvidas quanto a um carácter cumulativo do progresso científico.

Outros defenderam que se olharmos de perto as chamadas revoluções científicas podemos de facto descobrir suficientes aspectos comuns de cada lado da divisão, de modo a poder dizer-se que houve não apenas progresso, mas que podemos perceber como as teorias posteriores se constroem com base nas que as precedem. Esta ideia ficou consagrada em algo a que se chamou, com bastante pompa, ‘princípio da correspondência geral’. Grosseiramente, este princípio afirma que qualquer nova teoria aceitável deve dar conta da sua predecessora ‘degenerando’ na predecessora nas condições em que esta tinha sido bem confirmada por testes experimentais. Um modo conciso de explicar isto consiste em dizer que ficamos sempre com o melhor daquilo que temos. Um bom exemplo seria a tabela periódica dos elementos, que sobreviveu à revolução quântica.

Steven French, Science. Key Concepts in Philosophy (London and New York, 2007), pp. 35-36. Tradução de Carlos Marques.

domingo, março 15, 2009

Descartes: o dualismo corpo/mente

" O ponto de vista dominante da filosofia ocidental nos últimos trezentos anos tem sido o que derivou do filósofo francês René Descartes, um dos filósofos mais influentes de todos os tempos. O seu método consiste em olhar para um problema questionando o modo como um indivíduo adquire conhecimento. […]
O trabalho mais conhecido de Descartes, o Discurso do Método – o seu título completo é Discurso do Método Para Conduzir Adequadamente a Razão e Procurar a Verdade nas Ciências – está escrito num estilo atraente e claro. Pode parecer que aquilo que ele escreveu é mais simples e mais óbvio do que é na realidade, por isso temos de considerar aquilo que ele escreveu de modo cuidadoso. Eis uma passagem da quarta parte do Discurso do Método, publicado em 1637, na qual ele define de modo muito claro a sua perspectiva acerca da natureza do seu próprio eu (self):
“Então, examinando atentamente aquilo que eu era e vendo que poderia presumir que não possuía corpo e que não havia mundo nem nenhum local onde eu estivesse, mas não poderia fingir que eu não existia; e que, pelo contrário, pelo facto de estar a duvidar da verdade de outras coisas, seguia-se com bastante evidência e certeza que eu existia; ao passo que se eu tivesse parado de pensar, embora tudo o que eu sempre pensei ser verdadeiro o fosse, eu não tinha razão para acreditar que eu existia; eu soube a partir disto que eu era uma substância cuja essência ou natureza era apenas o pensamento….”
Esta passagem contém praticamente todos os componentes centrais da filosofia da mente de Descartes.Em primeiro lugar, Descartes é um dualista. Isto significa acreditar que a mente e o corpo são duas espécies de coisas bastante distintas, dois tipos do que ele chama “substância”.Em segundo lugar, aquilo que ele pensa que tu és, o teu eu, é a mente. Dado que tu és uma mente, e as mentes são totalmente independentes do corpo, tu podes mesmo assim existir, sem um corpo.Em terceiro lugar, a tua mente e os teus pensamentos são aquilo que tu conheces melhor. Para Descartes é possível, pelo menos em princípio, existir uma mente sem um corpo, sendo incapaz, por mais que tente, de se aperceber de outras coisas, incluindo outras mentes. Descartes sabia, como é óbvio, que o modo como tomamos conhecimento daquilo que se passa na mente de outras pessoas é pela observação da fala e das acções de “outros corpos”. Mas para ele havia duas possibilidades sérias capazes de pôr em causa a nossa crença na existência de outras mentes. Uma é que os outros corpos podem ser apenas fingimentos da nossa imaginação. A outra é que, mesmo que os corpos e as outras coisas materiais existam, as provas que normalmente pensamos que justificam a nossa crença que os outros corpos são habitados por mentes pode ter sido produzida por autómatos, por máquinas sem mentes.Em quarto lugar, a essência da mente é ter pensamentos, e por “pensamentos” Descartes significa algo de que te apercebes na tua mente quando estás consciente. (A essência de um tipo de coisa, K, é a propriedade – ou o conjunto de propriedades – cuja posse é uma condição necessária e suficiente para ser um membro de K. Ou seja, se algo tem a propriedade essencial E, então pertence a K – portanto E é uma condição suficiente para pertencer a K; tudo o que não tem E, não pertence a K – portanto E é necessário para a relação de pertença.) Noutras passagens Descartes diz que a essência de uma coisa material – a propriedade, por outras palavras, que toda a coisa material tem que ter – é ocupar espaço. Isto significa que para Descartes as duas diferenças essenciais entre coisas materiais e mentes são (1) que as mentes pensam, enquanto a matéria não pensa, e (2) que as coisas materiais ocupam espaço, enquanto as mentes não. A tese de Descartes é, assim, que aquilo que distingue a mente do corpo é o facto negativo que a mente não existe no espaço e o facto positivo que as mentes pensam.Não é surpreendente que Descartes tenha pensado que a matéria não pensa. Poucas pessoas supuseram que as mesas ou os átomos têm pensamentos. Mas porque é que ele pensou que as mentes não existem no espaço? Afinal, podes pensar que a minha mente está onde está o meu corpo. Mas se eu não tivesse corpo, tal como Descartes pensava que era possível, ainda assim eu teria uma mente. Por isso ele não podia dizer que uma mente tem que estar onde o seu corpo está, simplesmente porque se pode não ter um corpo. Além disso, se eu tenho um corpo, porque é que eu não deveria dizer que é aí que a minha mente está? Se eu não tivesse um corpo, essa seria a resposta errada, mas na verdade eu tenho um corpo.Eu penso que a principal razão para pensar que as mentes não existem no espaço é o facto de parecer estranho perguntar “Onde é que estão os teus pensamentos?”. Mesmo que respondesses dizendo “Eles estão na minha cabeça”, não seria óbvio que isto era literalmente verdadeiro. Porque se eles estivessem na tua cabeça, poderias saber exactamente em que lugar da cabeça estariam e a quantidade de volume que ocupariam. Mas não se pode dizer quantos centímetros de comprimento ou largura ocupa um pensamento, nem se estão situados a norte ou a sul do córtex cerebral. […]É precisamente este dualismo que faz surgir um conjunto de dificuldades à posição de Descartes. Isto porque quem pensa que mente e corpo são totalmente distintos tem que responder a duas questões principais. A primeira, como é que eventos mentais causam eventos físicos? Como é que, por exemplo, as nossas intenções, que são mentais, levam à acção, que envolve movimentos físicos do nosso corpo? Como é que, por exemplo, é possível que a interacção física entre os nossos olhos e a luz leve às experiências sensoriais da visão, que são mentais? […]A resposta de Descartes a estas questões parece clara e suficientemente simples. O cérebro humano, pensava ele, possui um ponto de interacção entre a mente e a matéria. De facto, Descartes sugeriu a glândula pineal, situada no centro da cabeça, como sendo o canal entre os dois domínios distintos da mente e da matéria. Era esta a resposta dele para o problema mente-corpo.No entanto esta teoria entra em conflito com a afirmação de Descartes de que o que distingue o mental do material é o facto do mental não ser espacial. Pois se acontecimentos mentais causam acontecimentos cerebrais, então isso não significa que eventos mentais ocorrem no cérebro? Como é que algo pode causar um acontecimento no cérebro sem ser um acontecimento (ou algo do mesmo género) no cérebro? Normalmente, quando um evento – digamos “A” – causa outro evento – digamos “B” – A e B têm de estar próximos um do outro, ou tem que existir uma sequência de eventos próximos uns dos outros entre A e B. Uma drama num estúdio de televisão causa uma imagem no meu televisor a muitos quilómetros de distância. Mas há um campo electromagnético transporta a imagem do estúdio até mim, um campo que existe entre o meu televisor e o estúdio. A perspectiva de Descartes terá de ser a de que os meus pensamentos causam mudanças no meu cérebro e que estas mudanças depois levam à minha acção. Mas se os pensamentos não existem ou não estão próximos do meu cérebro, e se não existe uma cadeia de eventos entre os meus pensamentos e o meu cérebro, então isto é um tipo de causalidade muito invulgar.Descartes quer dizer que os pensamentos não estão em nenhum lugar. Mas, de acordo com o que ele defende, pelo menos alguns dos efeitos dos meus pensamentos estão no meu cérebro e nenhum dos efeitos directos dos meus pensamentos estão no cérebro de outras pessoas. Normalmente os meus pensamentos levam às minhas acções e nunca levam directamente às acções de outras pessoas. Chegamos, assim, a um problema central da posição de Descartes, já que é normal pensar que as coisas estão onde os seus efeitos se originam. (Podemos designar esta ideia como a tese causal da localização). Deste ponto de vista, os meus pensamentos estão no meu cérebro, que é a origem do meu comportamento. Mas se os eventos mentais ocorrem no cérebro, então, dado que o cérebro está no espaço, pelo menos alguns eventos mentais também existem no espaço. Assim, o modo como Descartes distingue o mental do físico não funciona. Designemos esta aparente conflito entreo facto de que a mente e a matéria parecem interagir causalmentee a afirmação de Descartes que a mente não existe no espaço o problema de Descartes.”


Kwame Anthony Appiah,Thinking it Through: An introduction to contemporary philosophy, Oxford University Press


Trad. João D. Fonseca

Fotografia do autor, Professor de Filosofia na Universidade de Princeton

quarta-feira, março 11, 2009


KINGSLEY AMIS (1922-1995), um dos mais importantes prosadores britânicos do pós-guerra (pai do escritor Martin Amis), viveu durante algum tempo em Portugal durante os anos cinquenta do passado século. A passagem pelo nosso país inspirou o romance do qual se destaca o trecho abaixo, em que o escritor defende um certo grau de incomensurabilidade cultural entre pessoas de nações diferentes.



NACIONALISMO

Não queria que ficasses com a ideia de que estou a tentar deitar abaixo Portugal e os portugueses. O território é todo muito bonito e, se excluíres o governo e as classes altas, as pessoas são tão decentes como as que poderíamos encontrar em qualquer outro sítio. Só que se trata de um lugar que fica no estrangeiro e as pessoas são estrangeiras, o que significa (...) que elas e eu pertencemos a nações diferentes e que, portanto, não nos podemos entender nem vir a conhecer tão bem como dois sujeitos da mesma nação. Sou todo a favor da cooperação e amizade internacionais e tudo o mais, mas sejamos claros quanto ao queremos dizer.

Kingsley Amis, I Like It Here (1958). Tradução de Carlos Marques.



sábado, março 07, 2009

Impressões e Ideias

Auguste Renoir, Limoges, 1841/1919
"Todos admitirão prontamente que existe uma diferença considerável entre as percepções da mente, quando um homem sente a dor de um calor excessivo ou o prazer de um ardor moderado, e quando ele depois traz à memória a sua sensação ou a antecipa mediante a sua imaginação. Estas faculdades podem mimar ou copiar as percepções dos sentidos, mas nunca podem inteiramente atingir a força e a vivacidade do sentimento original. O máximo que delas afirmamos, mesmo quando actuam com o maior vigor, é que representam o objecto de uma maneira tão viva que poderíamos quase dizer que o sentimos ou vemos. Mas a não ser que a mente esteja desarranjada pela doença ou pela loucura, elas nunca podem chegar a tal nível de vivacidade que tornem totalmente indistinguíveis as percepções. Todas as cores da poesia, por esplêndidas que sejam, jamais podem pintar os objectos naturais de uma maneira tal que levem a descrição a ser tomada por uma paisagem real. O mais vivo pensamento é ainda inferior à mais baça sensação. (...)

Mas embora o nosso pensamento pareça possuir esta liberdade irrestrita, veremos, num exame mais pormenorizado, que se encontra realmente confinado a limites muito estreitos e que todo este poder criador da mente nada mais vem a ser do que a faculdade de compor, transpor, aumentar ou diminuir os materiais que nos são fornecidos pelos sentidos e pela experiência. Quando pensamos numa montanha de oiro, juntamos unicamente duas ideias consistentes, oiro e montanha, com as quais já antes estávamos familiarizados. Podemos conceber um cavalo virtuoso porque a partir do nosso próprio sentimento, podemos conceber a virtude; e esta agregamo-la à figura e à forma do cavalo, que é um animal para nós familiar. Em suma, todos os materiais do pensamento são derivados da sensibilidade externa ou interna: a mistura e composição destes pertencem apenas à mente e à vontade. Ora, para me expressar em linguagem filosófica, todas as nossas ideias, ou percepções mais fracas, são cópias das nossas impressões ou percepções mais intensas.”

David Hume, Investigação sobre o entendimento humano, Ediçõesb 70, 1985, Lx, Secção II, pag 25


Tradução de Artur Morão,

quinta-feira, março 05, 2009

PROBLEMAS DE FILOSOFIA DA CIÊNCIA: 
O PROBLEMA DA DEMARCAÇÃO

Diariamente, em jornais de todo o mundo, astrólogos dizem às pessoas o que o destino Ihes reservou. Sob cada um dos signos do zodíaco, que dependem das datas de nascimento, há uma pequena mensagem dizendo, por exemplo, que os nascidos em Touro devem tomar muito cuidado com suas finanças ou que os de Balança devem esperar progresso nos assuntos do coração. As várias críticas feitas a esses horóscopos dizem que eles são imprecisos on inexactos ou que estimulam o fatalismo. Todas essas críticas sobre as predições astrológicas poderiam ter sido feitas a qualquer momento nos últimos 2.500 anos, ou seja, em qualquer momento a partir de Sócrates. Há, no entanto, um tipo de crítica relativamente moderna que surge com mais frequência nos dias actuais. Ela afirma que a astrologia não é científica.

Dizer que esta crítica é relativamente moderna é importante. Até ao século XVII, a maioria dos intelectuais no Ocidente achava que a astrologia tinha algo a oferecer, e mesmo aqueles que não acreditavam nela não a teriam criticado dessa forma. É claro, há uma razão bastante simples para isso. A ciência, no sentido moderno, só se desenvolveu a partir do século XVII. Por isso, na filosofia da ciência - ao contrário do que ocorre com a psicologia filosófica, na epistemologia e na filosofia da linguagem - a maior parte dos problemas têm menos de três séculos de idade.

Embora dizer que uma teoria é não científica seja uma coisa relativamente comum nos últimos trezentos anos, não se sabe bem qual é a importância de uma criítica como essa. Se, afinal, as predições de um astrólogo específico acertam com bastante frequência, é provável que as pessoas que lêem o horóscopo não se importem muito se elas são ou não científicas, já que o que essas pessoas querem das predições astrológicas é que sejam verdadeiras e não que sejam científicas. O meu amigo Peter, que acredita que a astrologia funciona, preocupa-se mais com a imprecisão e exactidão das predições; e Mary, que também acredita nelas, preocupa-se se deveria ou não fazer uso delas, porque é cristã.

Mas as pessoas que criticam a astrologia por não ser científica não estão a dizer com isso que não crêem em horóscopos, nem tão pouco que é moralmente errado depender deles. Com efeito, uma pessoa pode dizer que a astrologia é pouco científica e ainda assim acreditar que um astrólogo específico fez predições fiáveis sobre os preços das acções. 0 que querem dizer, então, quando afirmam que uma teoria não é científica?

Essa questão é um dos problemas principais da filosofia da ciência (…). Na verdade, o problema despertou tanta atenção que lhe deram um nome. Karl Popper, um dos filósofos que mais influenciaram a ciência no nosso século, chamou-lhe "problema da demarcação". 0 que distingue a ciência da não-ciência? Como podemos demarcar a fronteira entre elas?

Kwame Anthony Appiah, Introdução à filosofia contemporânea (Petrópolis, 2006, pp. 122-3). Adaptado.