sábado, fevereiro 27, 2010

Estudos de género

Enquanto a heterossexualidade representa a Ordem Global em cujo quadro a cada sexo é fixado o seu justo lugar, as reinvindicações queer não constituem simplesmente reclamações visando o reconhecimento das suas práticas sexuais e modos de vida, mas são qualquer coisa que abala a própria ordem global e a sua lógica de hierarquização e de exclusão; precisamente enquanto tal, deslocados em relação à ordem existente, os queer representam a dimensão de Universalidade (ou, antes, podem representá-la, na medida em que a politização nunca se encontra directamente inscrita na posição social objectiva, mas induz o gesto de subjectivação). Judith Butler desenvolve uma poderosa argumentação contra a oposição abstracta e politicamente regressiva entre a luta económica e a luta queer "puramente cultural",pelo reconhecimento: longe de ser "puramente cultural" a forma social de reprodução sexual estaria no próprio núcleo das relações sociais de produção, o que quer dizer que a família heterossexual nulear constituiria uma componente-chave e uma condição das relações capitalistas de propriedade, de troca, etc; por isso, a maneira como a prática política queer questiona e sapa a heterossexualidade normativa constitui uma ameaça potencial para o próprio modo de produção capitalista.1

1. ver Judith Butler, Merely Cultural, New Left Review, 227, Janeiro, Fevereiro de 1998, pp.33, 34

Slavoj Zizek, Elogio da Intolerância, Relógio D'Água, 2006, pp 86,87

quinta-feira, fevereiro 25, 2010

O POSITIVISMO LÓGICO

O positivismo lógico, como alguns devem recordar, foi a filosofia introduzida por um grupo de filósofos europeus, chamado Círculo de Viena, no começo dos anos vinte do século passado, e que A. J. Ayer tornou popular no mundo anglófono com o seu livro Linguagem, Verdade e Lógica de 1936. De acordo com os positivistas lógicos, as únicas afirmações com sentido são aquelas que podem ser verificadas através da experiência sensorial ou aquelas que são verdadeiras apenas em virtude da sua forma e do significado das palavras usadas. Assim, uma afirmação tem sentido se a sua verdade ou falsidade puder ser verificada pela observação empírica (por exemplo, a investigação científica). As afirmações da lógica ou da matemática pura são tautologias; quer dizer, são verdadeiras por definição, simples modos de usar símbolos sem que se expresse qualquer verdade sobre o mundo. Nada mais há que possa ser conhecido ou discutido coerentemente. No coração do positivismo estava o princípio da verificação, que estabelece que o sentido de uma proposição consiste na sua verificação. Como resultado, as únicas afirmações com sentido são as usadas na ciência, na lógica ou na matemática.  Afirmações nas áreas da metafísica, da religião, da estética e da ética são literalmente sem sentido, pois não podem ser verificadas por métodos empíricos. Não são válidas ou inválidas. Ayer disse que ser um ateu ou um crente é algo absurdo, uma vez que a afirmação «Deus existe» é pura e simplesmente destituída de sentido.



Roy Abraham Varghese, "Prefácio" a Antony Flew, Deus ExisteTradução Carlos Marques.

ESTA OBRA ESTARÁ BREVEMENTE À DISPOSIÇÃO EM LÍNGUA PORTUGUESA NESTA TRADUÇÃO NUMA EDIÇÃO DA "Aletheia".


segunda-feira, fevereiro 15, 2010

CIÊNCIA E FILOSOFIA
Pode (...) perguntar-se como é que eu, um filósofo, podia envolver-me em assuntos tratados por cientistas. A melhor maneira de responder a isto é fazendo uma outra pergunta: estamos no domínio da ciência ou da filosofia? Quando estudamos a interacção entre dois corpos físicos, por exemplo, entre duas partículas subatómicas, estamos no domínio da ciência; quando perguntamos como podem essas partículas subatómicas – ou qualquer coisa física – existir, e porque é que elas existem, estamos no domínio da filosofia. Quando retiramos conclusões filosóficas a partir de dados científicos, estamos a pensar como filósofos.

Em 2004 afirmei que a origem da vida não pode ser explicada apenas a partir da matéria. Os meus críticos responderam anunciando triunfalmente que eu não tinha lido um certo artigo aparecido numa revista científica ou que não estava a par dos últimos desenvolvimentos da abiogénese (a geração espontânea de vida a partir de matéria inanimada). Com estas críticas, mostravam não entender o que estava em causa. Eu não estava preocupado com este ou com aquele facto da química ou da genética, mas com a questão fundamental do que significa dizer que algo possui vida e da relação que isso tem com o conjunto dos factos químicos e genéticos considerados como um todo. Pensar a este nível é pensar como filósofo. E, correndo o risco de parecer imodesto, não posso deixar de dizer que este é trabalho para filósofos e não para cientistas enquanto tal. As aptidões específicas dos cientistas não lhes conferem qualquer vantagem quando se trata de pensar sobre esta questão, tal como uma estrela do basebol não tem especial competência para determinar os benefícios para os dentes de uma determinada pasta dentífrica.

É claro que os cientistas, tal como qualquer outra pessoa, são livres de pensar como filósofos. E é também claro que nem todos os cientistas concordarão com a minha interpretação particular dos factos por eles postos à nossa disposição. Mas as suas divergências têm de se erguer sobre pés filosóficos. Por outras palavras, os cientistas têm de perceber que a autoridade ou capacidade científicas não têm qualquer relevância na análise filosófica. Isto não será difícil de perceber. Se expuserem as suas opiniões sobre a economia da ciência, elaborando por exemplo teorias sobre o número de empregos criados no âmbito da ciência e da tecnologia, terão de apresentar os seus argumentos diante do tribunal da análise económica. Do mesmo modo, um cientista que fala como filósofo terá de apresentar argumentos filosóficos. Como disse o próprio Einstein: «O homem de ciência é um fraco filósofo».



Antony Flew, Deus Existe. Tradução Carlos Marques.


ESTA OBRA ESTARÁ BREVEMENTE À DISPOSIÇÃO EM LÍNGUA PORTUGUESA NESTA TRADUÇÃO NUMA EDIÇÃO DA "Aletheia".

sexta-feira, fevereiro 12, 2010

Ser ético

Christopher Anderson, moda, 2006

Suponhamos que César Bórgia dizia:  " O meu princípio ético é este: piso tanto quanto posso os dedos dos pés dos outros homens." (...) Princípio ético! Nem tudo é um princípio ético. Como se identifica um princípio ético? Isto levou-nos ao uso do termo "ético". Que nada tem de preciso, evidentemente. Um princípio é ético devido às suas circunstâncias. Que "circunstâncias"? Podemos imaginar "circunstâncias" em que se justifica e se exige que gozemos o sofrimento, o sofrimento dos maus, por exemplo. Seja como for, há concerteza limites para aquilo que é um princípio ético.
(...)
Pelo caminho , enquanto subíamos, ele (Wittgenstein) começou a falar do ensino da ética. Impossível! Considera que a ética diz a alguém o que essa pessoa deve fazer. Mas como poderá seja quem for aconselhar outrem? Imaginemos alguém que aconselha outra pessoa que está apaixonada e prestes a casar-se, indicando-lhe todas as coisas que não poderá fazer se se casar. Que imbecilidade! Como pode alguém saber essas coisas da vida de outro homem?

O.K. Bouwsma, Conversas com Wittgenstein, Relógio d'Água, 2005,p.p.48,91


O conceito de ética presta-se a muitas confusões, a maior das quais reside na amplitude das coisas a que se  refere.Assim, ético é não só o princípio universal ou máxima universal da acção mas também as máximas universalizáveis, isto é, correctas para todos. Resumindo: é ético o que é do domínio dos princípios da acção e também o que são os princípios correctos da acção, o que se refere ao comportamento em geral mas também ao comportamento bom, nesse sentido haverá uma ética boa e uma ética má ou só é ético o comportamento bom ou correcto? O comportamento de um nazi não tem ética ou é eticamente incorrecto? Certamente que obedece a princípios éticos como o exemplo de César Bórgia : "O meu princípio é pisar os dedos dos pés de todos os homens."Será um mau princípio ético ou apenas, não é ético? Ou depende das circunstâncias? Estas e outras questões tornam o ensino da Ética muito complicado.

Helena Serrão

quarta-feira, fevereiro 10, 2010

Radicalismos 6


Jaques Henri Lartigue, Jogo de Ténis, 1921, Paris

Percorro a sala dos olhos. Que farsa! Toda essa gente sentada com um ar sério; comem. Não, não comem: reparam forças para levar a bom termo a tarefa que lhes foi atribuída. Cada um deles tem o seu pequeno entretenimento pessoal que os impede de se aperceberem que existem; não há nem um que não se julgue indispensável a alguém ou a alguma coisa. Não era o Autodidacta que me dizia outro dia: “ Ninguém era mais qualificado que Nouçapié para empreender esta vasta síntese?" Cada um faz a sua pequena coisa e ninguém é mais qualificado do que ele para a fazer. Ninguém mais qualificado que o caixeiro viajante para usar a pasta Swan. Ninguém  mais qualificado do que esse interessante rapaz, para espreitar por debaixo das saias da sua vizinha. E eu, eu estou entre eles, se repararem em mim pensarão que ninguém é mais qualificado que eu para fazer o que faço. Mas eu sei. Não tenho ar de nada, mas sei que existo e eles também existem. Se conhecesse a Arte de persuadir, iria sentar-me perto de um destes senhores de cabelos brancos e explicar-lhe-ia o que é a existência. Ao imaginar a cara que faria, desatei a rir. O Autodidacta olhava-me surpreendido. Gostaria de parar; mas não podia: ri até às lágrimas.
- Está muito feliz, senhor, disse-me o Autodidacta com ar circunspecto.



-É porque penso, disse-lhe a rir, que aqui estamos, iguais ao que somos, a comer e a beber para manter a nossa preciosa existência e, que não há nada, nada, nenhuma razão de existir.


Jean-Paul Sartre, La nausée, Gallimard, 1938,Barcelona, 2009, pp160,161


Tradução Helena Serrão

terça-feira, fevereiro 02, 2010

A diferença entre necessidade e vontade

Epicuro passou a vida inteira a dissecar o desejo, os seus ensaios continuam a ter uma grande relevância para a vida contemporânea. Ele realçou a distinção crítica entre necessidades e vontades enquanto insistia que faríamos melhor se reconhecêssemos a diferença entre as duas. Epicuro categorizava alguns desejos como naturais, outros como vãos. Por exemplo, é natural querer mover-se de um sítio para o outro. A prudência sugere que tentemos primeiro ir pelos nossos pés e pernas, talvez uma bicicleta, talvez um transporte público ou um carro da comunidade. A vaidade sugere um grande carro com todos os acessórios da moda e que se possa trocar por um novo modelo todos os anos. O desejo de amigos é natural, enquanto aproximar-se na esperança da amizade por uma “pessoa importante” é vão. Epicuro continua a sua cuidadosa dissecação. Entre os desejos naturais, alguns são essenciais enquanto outros são triviais. O desejo por comida é essencial. Podemos imaginar Epicuro num mercado agrícola, comprando o que se produz localmente enquanto encoraja os seus vizinhos a plantarem frutas e vegetais num espaço de terra comunitário. Os restos são bem vindos. Comer a batata e a maçã, com a pele e tudo. Em completo contraste, comprar comida feita, comer mais que o normal, ou fazer do caviar a base da dieta – todas estas práticas reduzem o desejo essencial de sobrevivência a uma trivialidade. Fazer compras numa “ Loja de Conveniência” de comida coloca o sentido de “ Conveniência” e de “Comida” em questão.

Poderemos aprender a discriminar entre desejos naturais e vãos. É simples, Epicuro conclui. “ A saúde exigida pela natureza é limitada e fácil de adquirir, a saúde exigida pela preguiça imagina-se alcançada no infinito. (Doutrinas Principais). Actualmente é fácil, não é?

Marietta Mc Carty, How philosophy can save your life, Penguin, New York, 2009, pp 7, 8
Tradução de Helena serrão
Imagem de um quadro de Severin Kroyer, Festa em Skagen, Noruega 1851/1909