terça-feira, março 04, 2014

Verdade e sentido


As questões levantadas pela nossa sede de conhecimento provêm da nossa curiosidade acerca do mundo, do nosso desejo de investigar tudo o que é dado ao nosso aparelho sensorial. A famosa primeira frase da Metafísica de Aristóteles, "Pantes anthrõpoi tou aidenai orengotai physei." - "Todos os homens desejam por natureza saber." -quando traduzida literalmente diz: "Todos os homens desejam ver e ter visto (ou seja, conhecer)", e Aristóteles acrescenta imediatamente: "Uma indicação disto é o seu amor pelos sentidos; porque eles são amados por si sós, completamente à parte do seu uso".As questões levantadas pelo desejo de saber são em princípio todas respondíveis pela experiência e raciocínio de senso comum; estão expostas a erro e ilusão corrigidas da mesma maneira que as percepções e experiências sensoriais. Mesmo a obstinação quanto ao progresso da ciência moderna que continuamente se corrige a si própria deitando fora as respostas e reformulando as perguntas, não contradiz o objecto basilar da ciência - ver e conhecer o mundo como é dado aos sentidos - e o seu conceito de verdade é derivado da experiência de senso comum da evidência irrefutável, a qual elimina o erro e a ilusão. Mas as questões levantadas pelo pensar são tais que é da própria natureza da razão levantá-las - questões de sentido - são todas irrespondíveis pelo senso comum e pelo refinamento deste a que chamamos ciência.(...) O intelecto, o órgão do conhecimento e da cognição, é ainda deste mundo; nas palavras de Duns Eccoto, cai debaixo da influência da natureza, cadit sub natura, e transporta com ele todas as necessidades às quais está sujeito um ser vivo, dotado de órgãos dos sentidos e capacidade cerebral. O contrário de necessidade não é contingência ou acidente mas sim liberdade. (...)
 Por outras palavras não existem verdade para além e acima das verdades factuais; todas as verdades científicas são verdades factuais, não excluindo aquelas que são geradas pela pura capacidade cerebral e expressas em uma linguagem de signos especialmente concebida, e só as declarações factuais são empiricamente verificáveis. Assim, a frase "Um triângulo ri" não é não verdadeira mas sem sentido, ao passo que a velha demonstração ontológica da existência de Deus, como a encontramos em Anselmo de Cantuária, não é válida e  neste sentido não é verdadeira, mas é plena de sentido. "

Hannah Arendt, A vida do espírito, Vol.I, Pensar,Instituto Piaget,2011, Lx

Foto: Siskind

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