Sebastião Salgado, Trabalhador de chá no Rwanda, 1991
Com o desenvolvimento da produção capitalista durante o período da manufactura, a opinião pública europeia despiu o último farrapo de consciência e de pudor. Cada nação vangloriava-se cinicamente de qualquer infâmia que servisse para acumulação do capital. Leiam-se por exemplo os ingénuos Annales du commerce, do honesto A. Anderson. Este bravo homem admira, como um golpe genial da política inglesa, que, quando da paz de Utrecht, a Inglaterra tenha arrancado à Espanha, pelo tratado de Asiento, o privilégio de fazer entre a África e a América espanhola, o tráfico de negros, que até então se fizera apenas entre África e as suas possessões na Índia oriental. A Inglaterra forneceu assim, até 1743, quatro mil e oitocentos negros por ano à América espanhola. Isso servia-lhe, ao mesmo tempo para cobrir com o véu oficial as proezas do seu contrabando. Foi o tráfico de negros que lançou as bases da grandeza de Liverpool; para esta cidade ortodoxa, o tráfico de carne humana constituiu todo o método de acumulação primitiva. E, até aos nossos dias, os notáveis de Liverpool cantaram as virtudes específicas do comércio de escravos, "o qual desenvolve o espírito de empreendimento até à paixão e forma marinheiros sem paralelo"(John Aikin, Description from the Country, 1745).(...)A industria algodoeira, ao mesmo tempo que introduzia em Inglaterra a escravatura infantil, nos Estados Unidos transformava o tratamento mais ou menos patriarcal dos negros num sistema de exploração mercantil. Em resumo, para suportar a escravatura disfarçada dos assalariados na Europa, era necessária a escravatura sem limites do novo mundo. Tanto e molis erat (De tal modo era difícil, Vergílio, Eneida,1,33). Eis por que preço pagamos as nossas conquistas; eis quanto nos custou desenvolver as leis eternas e naturais da produção capitalista, para consumar o divórcio entre os trabalhadores e as condições de trabalho, para transformar estas em capital, e a massa do povo em assalariados, em pobres laboriosos, obra-prima da arte, criação sublime da história moderna.Se, segundo Augier (Maria Augier, Du crédit Públic, 1842, p,265), foi com manchas naturais de sangue numa das faces que o dinheiro veio ao mundo, o capital surge exalando sangue e lama por todos os poros.
Karl Marx, A acumulação Primitiva, ,estampa, 1977, Lx, p.100,101,102,103 -
8ª Secção de O Capital Marx publicado pela primeira vez em 1867.
É inegável que, 148 anos passados da publicação deste texto, depois dos massacres de populações inteiras, duas guerras mundiais e várias revoluções comunistas, o mundo económico e moral ocidental não sejam o mesmo de que falava Marx, todavia há verdade factual nas suas palavras e esperança na possibilidade de mudança. A crítica contra as usurpações disfarçadas da sociedade capitalista é contundente, essa mesma crítica continua actual, hoje nenhuma alternativa se perfila contra o capitalismo selvagem que estamos a viver, apesar de nos considerarmos livres, não pode haver liberdade sem alternativas reais e credíveis.
Não podemos perder a memória nem a imaginação para voltar a ver os últimos 100 anos e o que é hoje a sociedade ocidental. As intervenções "ocidentais" por todo o mundo, da expansão ao tráfico, adquiriram novas formas mas têm o mesmo objectivo e deixam o mesmo rasto de sangue. Considerado ultrapassado o nome de Marx exala o medo do comunismo Estalinista que tem proporções fantasmagóricas maiores no nosso imaginário que o capitalismo do qual somos dependentes e cúmplices nas suas continuadas e pretensamente justificadas surtidas sanguinárias. Há pelo menos dois factos que dão razão a Marx: a alienação dos meios de produção tomou a forma de alienação do povo dos centros de poder, apesar do Citroen à porta somos uns assalariados e a nossa opinião, apesar de livre, conta zero, porque estamos todos a falar sozinhos. Segundo facto, a riqueza está acumulada em meia dúzia de detentores desses meios de produção enquanto a esmagadora população do mundo vive no limiar da pobreza. Estamos melhor hoje do que estávamos em termos de condições de trabalho? Parece-nos que sim, a verdade é que muitos nem têm direito ao trabalho. Daí que nos surpreende que Marx seja tão dramático, o dramatismo é sinal de romantismo serôdio, talvez não possa deixar de ser dramático por estar desesperado, sabe-se que vivia da caridade dos amigos para comer, nessa Inglaterra industrial onde as desigualdades sociais eram injustas e incompreensíveis. Apeteceu-me lembrá-lo 41 anos depois do 25 de Abril.
Helena Serrão
Sem comentários:
Enviar um comentário