terça-feira, agosto 30, 2016

Radicalismos 3


Raymond Depardon, Beirute, 1978. Guerra civil, falangista cristão



A liberdade social está intimamente ligada a certas virtudes intelectuais. O Mal pode existir num mundo onde grandes grupos de pessoas nutrem certezas dogmáticas acerca de assuntos que são teoricamente duvidosos. Parece fazer parte da natureza do animal humano acreditar não só em coisas para as quais existem provas, mas também em muitas outras coisas para as quais não existe a menor prova. E é precisamente naquelas coisas para as quais não há provas que geralmente se crê com paixão. Ninguém tem sentimentos entusiásticos acerca da tabuada de multiplicação ou da existência do Cabo Horne, porque estes assuntos não oferecem dúvidas. Mas em questões de teologia ou de teoria política, onde um indivíduo racional sustentaria que, na melhor das hipóteses, há uma probabilidade maior a favor deste ou daquele ponto de vista, as pessoas discutem apaixonadamente e estão prontas a fazer vingar as suas opiniões impondo, pela força das armas, a escravidão física, e, pelas escolas, a escravidão mental. As pessoas acostumam-se de tal maneira a sentir certezas onde deveriam sentir dúvidas que acabam por se tornar incapazes de agir sobre probabilidades.


Se chega a uma bifurcação na estrada em que não há qualquer sinal e onde no momento não se encontra ninguém a quem se pergunte o caminho e não se possui um mapa que indique qual a estrada que se pretende, o ser racional escolherá, das duas estradas, a que melhor lhe parecer, ao acaso, e inquirirá logo que encontre alguém. Por outro lado, se a mesma pessoa tiver vivido toda a sua vida numa atmosfera de dogmatismo, ou ficará parada, na mais completa perplexidade, na bifurcação, ou, se decide a escolher ao acaso, tornar-se-á tão dogmaticamente convencido de que escolheu bem que nunca lhe ocorrerá parar para inquirir quando lhe surgir a oportunidade de o fazer.


Bertrand Russell, Realidade e ficção, Europa-América, Lx, 1965,p. 77 e 78
Texto revelador este, no meio da desconfiança em relação ao racional. Sou tentada a rever a diferença entre a acção guiada por uma fé cega, sem suporte racional, e uma acção suportada por razões. A questão é a de pensar antes de tomar algo como certo, nenhuma certeza existe no campo ideológico, e por isso, porque esse pensamento nos conduziria à moderação não o queremos, coloca-mo-lo pelo contrário ao serviço da acção, obrigado a dar-lhe um sentido depois da acção feita. A possibilidade de pensar e agir de acordo com o resultado desse pensamento evitaria muitos males, se não pudermos ou não quisermos, façamos como Descartes, à falta de uma ideia clara sigamos pelo caminho menos radical, pois se estivermos enganados o dano não será tão grande. Parece-me que a guerra seria outra ou nenhuma se as facções em conflito tivessem este bom senso que advém de colocar a acção depois do pensamento e não antes. Não é brilhante como proposta, mas é a única que poderia evitar o mal e a desumanidade.

terça-feira, agosto 02, 2016

O que é a Filosofia? Hipótese de resposta 3 - Santo Agostinho



Giuseppe De Nittis, Mar revolto

4. Sendo assim, recebe, meu caro Teodoro – visto que para alcançar o que desejo te considero o único capaz de me auxiliar e sempre te admirei –, recebe, dizia eu, este relato onde te mostrarei em qual dos três grupos de homens está aquele que a ti se dirige, em que lugar me encontro e que tipo de auxílio reclamo de ti, com toda a segurança. Desde que li, quando aos dezanove anos frequentava a escola de retórica, o livro de Cícero que se intitula Hortênsio, inflamei-me de tal maneira pelo amor da filosofia que imediatamente me entreguei ao seu estudo. Porém, nem sequer me faltaram as névoas a perturbar a minha viagem e durante muito tempo, confesso, contemplei os astros que se afundavam no oceano e me conduziam para o erro. É que uma certa superstição pueril fazia-me perder todo o espírito crítico; quando ganhei mais coragem, afastei de mim aquele denso nevoeiro e convenci-me de que se deve acreditar mais nos que ensinam do que naqueles que mandam. Caí assim no meio de uns homens que veneram a luz que os olhos vêem como se fosse a realidade suprema e divina. Não concordava com eles, mas pensava que com aqueles véus escondiam algo de importante que me seria revelado quando, enfim, estivessem dispostos a levantá-los. Mas, após ter discutido com eles, abandonei-os e depois de ter atravessado este mar, os Académicos  apoderaram-se durante muito tempo do leme da minha vida, no meio das ondas, em luta com todos os ventos. Seguidamente, acostei a estas terras onde aprendi a conhecer o norte em que devia depositar confiança. Compreendi muitas vezes, de facto, quer pelo nosso sacerdote, quer por algumas conversas que tive contigo, que não se deve de forma alguma conceber Deus como corpóreo, nem a alma, que é a realidade mais próxima de Deus. No entanto, confesso que os atractivos de uma esposa e das honras me retinham, não me deixando aproximar com a rapidez necessária do seio da filosofia; só na altura em que essas ambições fossem alcançadas é que me apressaria para aquela enseada, com as velas desfraldadas e à força de remos – o que acontece a poucas e felicíssimas pessoas – e aí repousaria. Foi então que li algumas obras de Platão, por quem, sei, nutres grande admiração: confrontando-as como pude com os que pela autoridade nos transmitem os mistérios divinos, entusiasmei-me de tal maneira que, se a consideração por alguns homens me não demovesse, quereria ter quebrado todas aquelas âncoras. Que é que me faltava senão uma tempestade – tida como desfavorável – que, porque me encontrava preso a coisas vãs, viesse em meu auxílio? Foi então que se apoderou de mim uma forte dor de peito e não tendo saúde para suportar o fardo de uma profissão que me levaria, talvez, navegando até às sereias, a tudo renunciei e conduzi a minha barca, agitada e fendida, para a tão desejada tranquilidade.
 5. Agora já vês em que filosofia navego, como num porto. Mas é tão extenso e tão vasto este porto que, apesar de ser menos perigoso, não exclui por completo o erro. Por isso, não sei por que parte da terra, a única sem dúvida verdadeiramente feliz, me devo aproximar e alcançar. Que coisa de seguro consegui eu, de facto, se até hoje hesito e vacilo quanto ao problema da alma?

Santo Agostinho, Diálogo sobre a felicidade, Capítulo I, Parágrafos 4 e 5.
Tradução do original de Mário A. Santiago Carvalho, Edições 70, Lisboa 2014

segunda-feira, agosto 01, 2016

O que é a Filosofia? Hipótese de resposta 2 - Aristóteles


Fotografia de Lewis Hine, (1874/1940)


(...) todos consideram que a denominada “sabedoria” é a respeito das primeiras causas e princípios. Consequentemente, conforme foi dito antes, reputa-se que o experiente é mais sábio que aqueles que detêm uma sensação qualquer; o técnico, mais sábio que os experientes; os mestres de obra, mais sábios que os “trabalhadores braçais”, e as ciências teóricas, mais ciência que as produtivas.



É evidente, portanto, que a sabedoria é uma ciência a respeito de certos princípios e causas.

Dado que procuramos essa ciência, devemos investigar o seguinte: a respeito de quais causas e de quais princípios a sabedoria é uma ciência? Ora, se assumirmos as conceções que temos a respeito dos sábios, disso poderá surgir, talvez, algo mais claro.

Concebemos, primeiramente, que um sábio conhece tudo, na medida do possível, sem ter conhecimento de cada coisa particular. Em seguida, consideramos sábio aquele que é capaz de conhecer coisas difíceis, isto é, que não são fáceis de conhecer para o homem comum (o sentir é comum a todos e, por isso, é fácil e não é “sábio”). Além disso, no que respeita a qualquer conhecimento, consideramos ser mais sábio aquele que é mais exato e que tem maior capacidade de ensinar as causas. E, entre as ciências, consideramos ser sabedoria antes aquela que é escolhida em vista de si mesma e graças ao saber, de preferência àquela que é escolhida em vista dos resultados; 

(...) 
Que ela não é um conhecimento produtivo, é evidente também pelos que primeiro filosofaram: de fato, os homens, tanto agora como no início, começaram a filosofar devido ao admirar-se, admirando inicialmente, entre as coisas surpreendentes, aquelas que estavam à mão, em seguida, paulatinamente progredindo e formulando impasses (hipóteses) sobre problemas maiores, por exemplo, sobre as afeções da lua, do sol e dos astros, e sobre a geração do todo.

Ora, quem formula impasses (hipóteses) e se admira julga ser ignorante (por isso, também o apreciador de histórias é de certo modo filósofo, pois as histórias constituem-se de fatos admiráveis); consequentemente, se filosofaram justamente para fugir da ignorância, é claro que buscaram conhecer pelo saber e não em vista de alguma utilidade. Assim testemunham os próprios acontecimentos: por assim dizer, essa sabedoria começou a ser buscada quando já se encontravam satisfeitas todas as necessidades concernentes à facilitação e ao divertimento. É evidente, então, que a buscamos não devido a outra utilidade, mas, tal como dizemos que é livre o homem que é em vista de si mesmo e não é de outro, do mesmo modo dizemos que apenas ela, entre os conhecimentos, é livre, pois apenas ela é em vista de si mesma.

(...)
Também é correto denominar a filosofia como “ciência da verdade”. O fim da ciência teórica é a verdade, e, da ciência prática, é a ação. De fato, se os que sabem agir também investigam de que modo as coisas se dão, estudam-nas não como eternas, mas em relação a algo e agora.

Não conhecemos o verdadeiro sem a sua causa. Cada coisa pela qual algo de mesma denominação se atribui a outras tem, ela própria, mais do que as outras, essa mesma denominação (por exemplo: o fogo é o mais quente, pois é ele que é causa da quentura para outras coisas). Por conseguinte, também é mais verdadeiro aquilo que é causa pela qual itens posteriores são verdadeiros. Por isso, necessariamente, os princípios dos entes que são sempre são sempre os mais verdadeiros (pois não são verdadeiros apenas em um dado momento; tampouco há algo que lhes seja causa do ser, mas são eles que são causas do ser para outras coisas);consequentemente, tal como cada coisa se tem em relação ao ser, do mesmo modo se têm em relação à verdade.

Aristóteles, Metafísica, Libro I e II, 981a 25 -993b 23
Tradução de Lucas Angioni, Fev.2008