O movimento totalitário leva realmente a sério a sua propaganda, e essa seriedade expressa-se muito mais assustadoramente na organização dos seus adeptos do que na liquidação física dos seus oponentes. A organização e a propaganda, e não o terror e a propaganda, são duas faces da mesma moeda. O mais surpreendentemente novo expediente organizacional dos movimentos na fase que antecede a tomada do poder é a criação de organizações de vanguarda, ou seja, a definição da diferença entre os membros do partido e os seus simpatizantes.
Comparadas a essa invenção, outras características tipicamente totalitárias, como a nomeação de funcionários por uma cúpula ideológica e a monopolização final das nomeações por um homem só, são de menor importância. O chamado "princípio de liderança" não é totalitário em si; algumas de suas características derivam do autoritarismo e da ditadura militar, que muito contribuíram para obscurecer e subestimar o fenómeno essencialmente totalitário. Se os funcionários nomeados por alguém de cima tivessem verdadeira autoridade e responsabilidade, estaríamos lidando com uma estrutura hierárquica na qual a autoridade e o poder são delegados e regulados por lei. O mesmo também se aplica à organização de um exército e à ditadura estabelecida segundo o modelo militar; neste caso, o poder absoluto de comando, de cima para baixo, e a obediência absoluta, de baixo para cima, correspondem a uma situação de extrema emergência em combate, e é precisamente por isso que não são totalitárias. Uma escala de comando hierarquicamente organizada significa que o poder do comandante depende de todo o sistema hierárquico dentro do qual atua. Toda hierarquia, por mais autoritária que seja o seu funcionamento, e toda escala de comando, por mais arbitrário e ditatorial que seja o conteúdo das ordens, tende a estabilizar-se e constituiria um obstáculo ao poder total do líder de um movimento totalitário.(1 )Na linguagem dos nazis, é o "desejo do Führer", dinâmico e sempre em movimento — e não as suas ordens, expressão que poderia indicar uma autoridade fixa e
circunscrita —, que são a "lei suprema" num Estado totalitário.(2 )
O caráter totalitário do princípio de liderança advém unicamente da posição em que o movimento totalitário, graças à sua peculiar organização, coloca o líder, ou seja, da importância funcional do líder para o movimento. Comprova essa asserção o fato de que, tanto no caso de Hitler como no de Stálin, o verdadeiro princípio de liderança só se cristalizou lentamente, em paralelo com a gradual
"totalitarização" do movimento.
"totalitarização" do movimento.
(1). Exemplo disso é o pedido de Himmler, veementemente urgente, para que "não se emitisse nenhum decreto referente à definição do termo 'judeu'"; porque, "com todos esses compromissos idiotas, estaremos atando as nossas próprias mãos" (Documento de Nurembergue n? 626, carta a Berger datada de 28 de julho de 1942, Centre de Documentation Juive).
(2). A fórmula "O desejo do Führer é a lei suprema" encontra-se em todas as normas e regulamentações oficiais sobre a conduta do Partido e da SS. A melhor fonte nesse assunto é Otto Gauweiler, Rechtseinrichtungen und Rechtaufgaben der Bewegung [Disposições e tarefas jurídicas do movimento], 1939.
Hannah Arendt, A Origem do totalitarismo, 1951
Edição... Não está identificada a tradução usada, obra digitalizada, tradução brasileira de 1973
Arendt surge com urgência um pouco por todo o lado. Teses de mestrado e doutoramento, televisão, cinema, literatura, jornais. A sua obra parece apaziguar-nos e, ao mesmo tempo, alertar-nos contra as incertezas do que se vislumbra no horizonte: radicalismos, extremismos imbecis e muito totalitarismo encapotado. Parece haver uma contradição - apazigua e alerta - mas essa contradição parece-me o irrecusável da leitura de uma obra como "A Origem do Totalitarismo". Compreendemos o mecanismo, isso apazigua-nos, mas compreendemos também a facilidade de ação com que esse mecanismo se impôs a milhões de pessoas vulgares e isso... alerta-nos. Note-se como as palavras de Arendt tocam na fronteira entre as ciências sociais e a Filosofia situando-se numa área de liberdade reflexiva que é para alguns, os ortodoxos do pensamento, superficialidade e irresponsabilidade. Atrevo-me a pensar nas disciplinas onde querem ordenar e classificar a investigação, um pouco como as gavetinhas dos quartos dos bébés, as mobílias em miniatura. Alguns continuam a querer o sítio entediante das abstrações que não nos ajudam a interpretar o real/histórico, antes nos alheiam do mundo, numa pretensa ortodoxia filosófica. Mas a força e pertinência do pensamento de Arendt vem exatamente na familiaridade com que o horripilante se pode travestir. A proximidade viral com que o mal se pode estabelecer com a nossa indiferença ou cumplicidade. Esse olhar captou, por todo o mundo, leitores fiéis que a entendem, desta ou doutra maneira, a discutem, a divulgam e ainda a utilizam para poder olhar com preocupação o caldo de acontecimentos agigantados e frenéticos com que a comunicação social nos brinda diariamente e onde cada vez é mais difícil distinguir factos de opiniões, acontecimentos de invenções.
Helena Serrão
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