David Seymour, 1911/1956 Varsóvia
“O que significa emitir um juízo moral, discutir uma questão
ética ou viver de acordo com padrões éticos? Como diferem os juízos morais de
outros juízos práticos? Por que razão achamos que a decisão de uma mulher de
fazer um aborto levanta uma questão ética, o mesmo não acontecendo com a sua
decisão de mudar de emprego? Qual é a diferença entre uma pessoa que vive de
acordo com padrões éticos e outra que não procede assim?
(…) quem segue convicções éticas não convencionais vive,
mesmo assim, de acordo com padrões éticos, *se pensar, por qualquer motivo, que
o que faz é um bem*. A condição em itálico dá-nos uma pista para a resposta que
procuramos. A noção de viver de acordo com padrões éticos está ligada à noção
da defesa da forma como se vive, de dar uma razão para tal, de a justificar.
Assim, uma pessoa pode fazer todo o tipo de coisas que consideramos um mal e,
mesmo assim, continuar a viver de acordo com padrões éticos, se for capaz de
defender e justificar o que faz. Podemos achar a justificação pouco adequada e
continuar a pensar que as ações são um mal, mas a tentativa de justificação,
bem sucedida ou não, é suficiente para trazer o comportamento dessa pessoa para
o domínio do ético, em oposição ao não ético. Quando, por outro lado, uma pessoa
não consegue encontrar uma justificação para aquilo que faz, podemos rejeitar a
sua pretensão de que vive de acordo com padrões éticos, mesmo que aquilo que
faz respeite princípios morais convencionais. Podemos ir mais longe. Se
aceitarmos que uma determinada pessoa vive de acordo com padrões éticos, a
justificação deve ser de determinado tipo. Uma justificação exclusivamente em
termos de interesse pessoal, por exemplo, não serve. Quando Macbeth,
contemplando o assassínio de Duncan, admite que apenas a "ambição
desmedida" o leva a cometê-lo, está a admitir que a ação não pode
justificar-se eticamente. "Para eu poder ser rei em seu lugar" não é
uma tentativa frágil de justificação ética para o assassínio; não é o tipo de
razão que conta como justificação ética. É necessário mostrar que as ações
motivadas pelo interesse pessoal são compatíveis com princípios éticos de base
mais ampla para serem defensáveis, porque a noção de ética traz consigo a ideia
de algo mais vasto do que o individual. Se eu quiser defender o meu
comportamento com fundamentos éticos, não posso assinalar apenas os benefícios
que tal comportamento me traz a mim. Tenho de me preocupar com um grupo mais
vasto. Desde a antiguidade que os filósofos e os moralistas têm expressado a
ideia de que o comportamento ético é aceitável de um ponto de vista que é, de
alguma forma, universal. A "regra de ouro" atribuída a Moisés, que se
encontra no livro do Levítico e foi subsequentemente repetida por Jesus, diz
que devemos ir para além do nosso interesse pessoal e "amar o nosso
semelhante como a nós mesmos" ou, por outras palavras, atribuir aos
interesses alheios a mesma importância que damos aos nossos. A ideia de nos
pormos no lugar dos outros está associada à outra formulação cristã do mandamento,
segundo a qual devemos fazer aos outros aquilo que gostaríamos que eles nos
fizessem. Os Estóicos defendiam que a ética decorre de uma lei natural
universal. Kant desenvolveu esta ideia na sua famosa fórmula: "Age apenas
segundo as máximas que possas ao mesmo tempo querer que se tornem leis
universais." A teoria de Kant, por sua vez, foi modificada e desenvolvida
por R. M. Hare, que vê a universalizabilidade como uma característica lógica
dos juízos morais. Hutcheson, Hume e Adam Smith, filósofos ingleses do século
__XVIII, apelaram para um "espectador imparcial" imaginário como
pedra-de-toque do juízo moral; a sua versão moderna é a teoria do observador
ideal. Os utilitaristas, de Jeremy Bentham a J. J. Smart, consideram axiomático
que, ao decidir sobre questões morais, "cada qual vale por um e ninguém
por mais de um", enquanto John Rawls, um importante crítico contemporâneo
do utilitarismo, incorpora essencialmente o mesmo axioma na sua própria teoria,
deduzindo princípios éticos fundamentais de uma escolha imaginária, na qual
aqueles que escolhem não sabem se serão beneficiados ou prejudicados pelos
princípios que escolhem. Até mesmo filósofos do continente europeu, como o
existencialista Jean-Paul Sartre e o especialista em teoria critica Jürgen Habermas,
que diferem em muitos aspetos dos seus colegas de expressão inglesa - e também
entre si -, concordam que, em certo sentido, a ética é universal.”
Peter Singer, Ética Prática, Prefácio, Gradiva, 1993
Tradução Álvaro Augusto Fernandes