Talvez seja evidente que há uma gama considerável de ações,
semelhantes a ações incontinentes num aspeto ou noutro, em que podemos falar de
autoengano, insinceridade, má fé, hipocrisia, desejos inconscientes, motivos e
intenções, e assim por diante. Há, na verdade, uma grande tentação, ao
trabalhar sobre esse assunto, em fazer de psicólogo amador. Morremos de vontade
de dizer: lembrem-se da enorme variedade de maneiras em que um homem pode
acreditar ou manter algo, ou saber, ou querer algo, ou ter medo disso, ou fazer
alguma coisa. Podemos agir como se soubéssemos algo e, no entanto, duvidar
profundamente disso; podemos atuar à como queremos e, ao mesmo tempo, afastar-nos
como um observador e dizer a nós mesmos: "Que coisa estranha de se
fazer". Podemos desejar coisas e dizer a nós mesmos que as odiamos. Esses meio
estados e estados contraditórios são comuns e cheios de interesse para o
filósofo. Sem dúvida, que explicam, ou pelo menos apontam para uma maneira de
descrever sem contradição, muitos casos em que nos encontramos a falar de
fraqueza da vontade ou de incontinência. Mas nós mesmos mostramos uma certa
fraqueza como filósofos, se não perguntarmos: todo caso de incontinência
envolve uma das zonas sombrias onde queremos aplicar, e reter, algum predicado
mental? Não acontece que eu tenha um julgamento claro e inabalável de que minha
ação não é para o melhor, e considere todas as coisas, e ainda que a ação que eu
faço não tenha nenhuma parcela de compulsão ou seja independente de compulsão?
Não há como provar que tais ações existem; mas parece-me absolutamente certo
que sim.(...)
Austin reclama que, ao discutir este tópico, estamos
propensos a dizer que"... colapsar, sucumbindo à tentação, é perder o controle de
nós mesmos". "Elabora: Platão, eu suponho, e depois dele Aristóteles,
fixaram essa confusão, tão má no seu tempo, quanto a confusão posterior
e grotesca da fraqueza moral com a fraqueza da vontade. (…)Frequentemente sucumbimos
à tentação com calma, mesmo com delicadeza. (…)Há também muitos casos em que
agimos contra o nosso melhor julgamento e que não podemos descrever isso como
sucumbindo à tentação. Nos relatos usuais de incontinência existem, começa agora
a aparecer, dois temas bem diferentes que se entrelaçam e tendem a confundir-se.
Um é que o desejo nos distrai do bem ou força o mal; a outra é que a ação
incontinente sempre favorece a paixão egoísta suplantando o chamamento do dever
e da moralidade. O fato dos dois temas poderem ser separados foi enfatizado por
Platão tanto no Protágoras quanto no Filebo, quando mostrou que o hedonista,
por acaso, apenas pelo seu próprio prazer, poderia ir contra o seu bem; "Oh, diga-me, quem primeiro declarou,
quem primeiro proclamou: que o homem só faz coisas desagradáveis porque não
conhece os seus interesses reais ...? O que deve ser feito com os milhões de factos
que testemunham que os homens, conscientemente, entendendo completamente seus
reais interesses, os deixaram em segundo plano e correram precipitadamente num
outro caminho ... sem serem obrigados por ninguém, nem por nada.”(Dostoiévski, Cadernos do subterrâneo).
Ronald Davidson, Ensaios sobre ações e acontecimentos, Clarendon Press, Oxford, p.2 8, 29
Fotografia: John Florea, 1945