Helmut Newton, Charlotte Rampling,1973
Temos de voltar novamente a divagar. Pois, na verdade, não
se trata somente do estreitamento do conceito do sentido comum passando a ser
gosto, mas, da mesma forma, um estreitamento do próprio conceito do gosto. A
longa pré-história que esse conceito tem, até Kant o transformar no fundamento
da crítica do juízo, permite que se reconheça que o conceito do gosto é
originariamente um conceito mais moral do que estético. Descreve um ideal de
genuína humanidade e tem a agradecer a sua cunhagem ao empenho de se distinguir
criticamente do dogmatismo da "escolástica". A utilização do conceito
só mais tarde veio a restringir-se ao "espírito do belo". Na origem
da sua história encontra-se Balthasar Gracian. Gracian parte do princípio de
que o gosto, sensível, o mais animalesco e o mais íntimo dos nossos sentidos,
já contém o ponto de partida da diferenciação que se realiza no julgamento
espiritual das coisas. O diferenciar do gosto, que é, de uma forma mais
imediata, o usufruir da recetividade e da rejeição, não é, pois, na verdade, um
mero instinto, mas já mantém o meio termo entre o instinto e a liberdade
espiritual. O que justamente caracteriza o gosto é que ele mesmo, em relação a
isso, ganha a distância da escolha e do julgamento, o que pertence à exigência
mais iminente da vida. É assim que Gracian já vê no gosto uma
"espiritualização da animalidade" e indica, com razão, que a formação
(cultura) procede não somente do espírito (ingenio) mas já também do gosto
(gusto). É conhecido que o mesmo vale para o gosto sensorial. Existem pessoas
que têm uma boa língua, gourmets, que cultivam essas alegrias. Assim, esse
conceito do gusto é, para Gracian, o
ponto de partida para a formação do ideal social de Gracian. O seu ideal do
instruído (do discreto) consiste em que o hombre
en su punto adquire a correta liberdade de distância com relação a todas as
coisas da vida e à sociedade, de maneira que saberá diferenciar e escolher
consciente e ponderadamente. (…)
O gosto não é somente o ideal que apresenta uma nova
sociedade, mas em primeiro lugar vem a formar-se, sob o signo desse ideal do
"bom gosto" aquilo que, desde então, se denomina a "boa
sociedade". Esta já não se reconhece ou se legitima através do nascimento
e do status mas, basicamente, em nada mais do que através da comunhão dos seus
julgamentos, ou melhor, sabendo elevar-se da parvoíce dos interesses e da
privacidade das preferências para exigência do julgamento. Sob o conceito de
gosto pensa-se, sem dúvida, uma forma de conhecimento. Ocorre sob o signo do
bom gosto, que se seja capaz de manter distância quanto a si próprio e quanto
às preferências privadas. O gosto não é, segundo sua natureza mais genuína, nada
que seja privado, mas, sim, um fenómeno social de primeira categoria. Pode até
opor-se à inclinação privada do indivíduo, como se fosse uma instância de
julgamento, em nome de uma universalidade, do que ele acredita e que representa. Pode-se ter uma preferência
por algo que o próprio gosto ao mesmo tempo repudia. A sentença judicial do
gosto possui nisso uma peculiar decisão. Quanto a questões de gosto não existe,
reconhecidamente, nenhuma possibilidade de argumentar (Kant diz corretamente
que, quanto a coisas do gosto, existe discórdia, mas não disputa), mas não
somente porque não se consegue estabelecer padrões concetuais universais, que
todos tenham de reconhecer, mas porque nem sequer se procuram esses tais
padrões, e até, sequer, os acharíamos justos, caso existissem. Gosto, temos de
ter - não se pode deixar que nos seja demonstrado, e também não se pode
substituí-lo por mera imitação. Da mesma forma, o gosto não é nenhuma mera
propriedade privada, porque ele sempre quer ser bom gosto. A decisão do juízo
do gosto inclui a sua reivindicação de validade. O bom gosto está sempre seguro
de seu julgamento, isto é, ele é, de acordo com sua natureza, um gosto seguro:
um aceitar ou rejeitar que não conhece nenhuma oscilação, nenhum olhar de
soslaio a um outro e nenhuma procura por motivos.(...)
O conceito do "mau gosto" não é pois um contra fenómeno
original com relação ao "bom gosto". O seu oposto é, antes, "não
ter gosto algum". O bom gosto é uma sensibilidade que evita tão
naturalmente tudo que é chocante, de maneira que a sua reação se torna, para
quem não tem gosto, simplesmente incompreensível.
Hans-Georg Gadamer , Verdade e método, 1999, Petropólis, Ed.Vozes, P.82,83 e 84