quinta-feira, maio 23, 2019

O problema do mal em Leibniz




Leibovitz, Os miseráveis.


A expressão teodiceia foi criada, como vimos, por Leibniz num ensaio em que o filósofo debatia a bondade de Deus, tentando estabelecer assim um tratado racional sobre Deus, sobre a liberdade do homem e a origem do mal. Perante o problema do mal, o filósofo assumiu uma posição optimista, concluindo que o mundo criado por Deus ainda é o melhor dos mundos possíveis.  A teodiceia surgiu a partir dos rudimentos de uma “tradição” vigente, eminentemente religiosa, onde a natureza era um sistema onde o acaso é fruto de um determinismo que os homens desconhecem, e o mal é um elemento necessário para que ocorra o equilíbrio (a estética, já vista), uma perfeição da qual o ser humano conhece somente uma parte do todo. Ou seja: dessa doutrina, se pode inferir que todo o mal particular concorre para um bem universal. Assim, se a sabedoria de Deus escolheu este mundo para ser o lar de sua Criação, não é lícito duvidar que este seja o “melhor dos mundos”. Dentro desse ponto de vista, pode-se ler que, nos seus ensaios sobre a teodiceia, Leibniz afirmou:

       A imperfeição original das criaturas põe limites à ação do Criador que tende para o bem. E como a matéria mesma é um efeito de Deus, não pode ser ela mesma a fonte do mal e de sua imperfeição. Mostramos que essa fonte se encontra nas formas ou ideais dos possíveis, e que não é algo oriundo de Deus (In: Teodiceia, 31).

        Pois, assim como um mal menor é uma espécie de bem, do mesmo modo um bem menor é uma espécie de mal, se criar obstáculos a um bem maior; e haveria algo a ser corrigido nas ações de Deus, se houvesse um meio de fazer melhor. Deus quer fazer um bem maior, mas esse desejo – segundo Leibniz – às vezes esbarra na limitação humana. Isto não significa cair na armadilha do otimismo leibniziano, onde tudo é para o melhor, e até o mal contribui para isto. O homem é um ser de antecipação, legítimo zôon proleptikon (um animal político) e não somente alguém amparado no presente e saudoso do passado. O que causa o mal não é a matéria, mas a limitação da natureza criada. Essa referência ao chamado “mal metafísico” (oriundo da limitação humana) é a perspectiva principal do mal na concepção de Leibniz. Ela é, sem dúvidas, a porta de entrada para abordar (e entender) tanto o mal físico (a dor) quanto o mal moral (pecado).

       A teodiceia – trocada em miúdos – se formos buscar o animus de Leibniz, seu criador, é muito claramente uma teoria criada – como o livre-arbítrio de Santo Agostinho – para “defender Deus”, muitas vezes questionado (e até acusado) pela objeção do mal. Na teologia protestante contemporânea, vamos encontrar o suíço K. Barth († 1968) que afirmou que a teodiceia de Leibniz é uma “lógica quebrada”, onde Deus traz o prêmio (o bem) com a mão direita, e o castigo (o mal), com a esquerda (in: Gott und das Nietzsche [Deus e o nada]. Frankfurt, 1963).

António Mesquita Galvão

terça-feira, maio 21, 2019

Crítica de Kant ao argumento cosmológico.

 
Ainda há pouco disse que neste argumento cosmológico se ocultava todo um ninho de pretensões dialéticas, que a crítica transcendental facilmente pode descobrir e destruir. Vou limitar-me a citá-las, por agora, e deixo ao leitor já exercitado a tarefa de investigar e anular esses princípios ilusórios.
Aí se encontra por exemplo: 1. o princípio transcendental que do contingente nos faz inferir uma causa, princípio que só tem significado no mundo sensível, mas que já não tem sentido fora desse mundo. Com efeito, o conceito puramente intelectual do contingente não pode produzir nenhuma proposição sintética como a da causalidade, e o princípio desta só no mundo sensível encontra significação e critério para a sua aplicação; aqui, porém, deveria precisamente servir para sair do mundo sensível. 2. O raciocínio que consiste em concluir, da impossibilidade de uma série infinita de causas sobrepostas dadas no mundo sensível, uma causa primeira; o que nem os princípios do uso da razão autorizam na própria experiência, quanto mais tornar extensivo este princípio para além dela (até onde esta cadeia não pode prolongar-se). 3. A falsa satisfação da razão consigo mesma em relação ao acabamento desta série, em virtude de pôr enfim de lado toda a condição, sem a qual todavia não pode ter lugar nenhum conceito de necessidade; como então nada mais se pode compreender, considera-se isto como o acabamento do seu conceito. 4. A confusão da possibilidade lógica de um conceito de toda a realidade reunida (sem contradição interna) com a possibilidade transcendental; ora esta última, para operar uma síntese desse gênero, requer um princípio que, por sua vez, só pode aplicar-se no campo das experiências possíveis, etc.
O artifício da prova cosmológica tem a finalidade única de evitar a prova que pretende demonstrar a priori a existência de um ser necessário, mediante simples conceitos, prova que deve-ria ser estabelecida ontologicamente, coisa de que nos sentimos completamente incapazes. Com essa intenção concluímos, tanto quanto é possível, de uma existência real que se põe como fundamento (de uma experiência em geral), uma condição absolutamente necessária dessa existência. Não temos, pois, necessidade de explicar a sua possibilidade. Pois, se está provado que ela existe, é inútil o problema da sua possibilidade. Se queremos agora determinar, de uma maneira mais precisa, na sua essência, este ser necessário, não procuramos aquilo que é suficiente para compreender, pelo seu conceito, a necessidade da existência; pois que se pudéssemos fazê-lo não teríamos necessidade de nenhum pressuposto empírico; não, nós procuramos apenas a condição negativa (conditio sine qua non) sem a qual um ser não seria absolutamente necessário. Ora, isto seria viável em qualquer espécie de raciocínios que remontam de uma conseqüência dada ao seu princípio; porém, aqui, infelizmente, a condição que se exige para a necessidade absoluta só pode ser encontrada num ser único que, por conseguinte, deveria conter no seu conceito tudo o que se requer para a necessidade absoluta e que, portanto, possibilita uma conclusão a priori de esta necessidade; isto é, deveria também poder concluir-se, reciprocamente, que a coisa, à qual este conceito (da realidade suprema) convém, é absolutamente necessária, e se não posso concluir assim (o que terei de confessar, se quiser evitar a prova ontológica), esta nova via é também um malogro e novamente me encontro no ponto de onde parti.
 Immanuel Kant, Crítica da razão pura
Tradução: Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão
Edição: Fundação Calouste Gulbenkian, 5. ed, Lisboa,1985, p.507,508

sexta-feira, maio 10, 2019

Deus: causa primeira.


"A existência de Deus pode ser provada por cinco vias. A segunda via resulta da natureza da causa eficiente. Vemos que no mundo dos sentidos existe uma ordem das causas eficientes. Não há nenhum caso conhecido (nem, na verdade, é possível) no qual se verifique que uma coisa é a causa eficiente de si mesma; pois, desse modo, seria anterior a si mesma, o que é impossível. Ora, não é possível regredir infinitamente nas causas eficientes, porque em todas as causas eficientes ordenadas, a primeira é a causa da causa intermédia, e esta, quer seja várias ou apenas uma, é a causa da causa última. Ora, retirar a causa é retirar o efeito. Portanto, se não existisse uma causa primeira entre as causas eficientes, não existiria uma causa última nem nenhuma causa intermédia. Mas se for possível regredir infinitamente nas causas eficientes, não existirá uma primeira causa eficiente, nem existirá um último efeito, nem quaisquer causas eficientes intermédias; e tudo isto é completamente falso. Portanto, é necessário admitir uma primeira causa eficiente, à qual todos dão o nome de Deus."
                                                
São Tomás de Aquino, Suma Teológica, Parte a, 2, 3.

quarta-feira, maio 01, 2019

Santo Anselmo: Que Deus existe verdadeiramente.

Assim, pois, Senhor, tu que dás a inteligência da fé, dá-me, tanto quanto aches bem, que eu compreenda que tu existes como nós acreditamos e que tu és o que nós acreditamos. Nós acreditamos, com efeito,que tu és “alguma coisa maior do que a qual nada pode ser pensado”.Será que não existe uma tal natureza, uma vez que o “insensato disse no seu coração: ‘Deus não existe’ ”?16Mas certamente este mesmo insensato, quando ouve isto que eu digo – ‘alguma coisa maior do que a qual nada pode ser pensado’ –, compreende o que ouve, e o que ele compreende existe na sua inteligência, mesmo se ele não compreende que isso existe . Porque uma coisa é que certa realidade esteja no intelecto, outra é compreender que tal realidade existe. De facto, quando um pintor pensa antes o que vai fazer, tem na inteligência o que ainda não fez, mas de modo nenhum compreende que exista o que ainda não fez. Pelo contrário, quando já o pintou, tem na inteligência o que já fez e compreende que isso existe . Mesmo o insensato está, pois, convicto de que “alguma coisa maior do que a qual nada pode ser pensado” existe pelo menos no intelecto: porque ele compreende-o quando o ouve, e tudo o que é compreendido existe no intelecto.Mas, sem dúvida, “aquilo maior do que o qual nada pode ser pensado” não pode existir unicamente no intelecto. Se, na verdade, existe pelo menos no intelecto, pode pensar-se que exista também na realidade, o que é ser maior. Se pois “aquilo maior do que o qual nada pode ser pensado” existe apenas no intelecto, então “aquilo mesmo maior do que o qual nada pode ser pensado” é “algo maior do que o qual algo pode ser pensado”. Mas isto, , é claramente impossível. Existe, pois, sem a menor dúvida, “alguma coisa maior do que a qual nada pode ser pensado” tanto no intelecto como na realidade.

 É impossível pensar que Deus não exista 
Isto existe tanto no intelecto como na realidade, em todo o caso, é tão verdadeiro que nem se pode pensar que não exista. Porque pode-se pensar que existe alguma coisa que não se pode pensar que não existe;o que é ser maior do que aquela que se pode pensar que não existe. Daí que, se se pode pensar que “alguma coisa maior do que a qual nada pode ser pensado” não existe, aquilo mesmo “maior do que o qual nada pode ser pensado” não é “aquilo maior do que o qual nada pode ser pensado”; o que não pode convir. Assim, pois, “alguma coisa maior do que a qual nada pode ser pensado” existe tão verdadeiramenteque não se pode pensar que não existe.

Santo Anselmo,  Proslogion seu Alloquium de Dei existentia,p.12 e 13
 tradução de josé Risa
www.lusosofia.nethttp://www.lusosofia.net/textos/anselmo_cantuaria_proslogion.pdf