Ontem, no meu bairro, que é uma urbanização em betão com altura consistente e casas paralelipipedos basicamente recentes e iguais, (para não imaginarem conjuntos de casas antigas com lojas de rua e vielas inclinadas),alguém colocou na sua varanda uma folha A4 escrita com letra preta, à
distância do braço de quem passava; " Sirva-se!Estamos fechados em casa
mas somos solidários com quem quer festejar o 25 de Abril!" depois
havia uma fila de cravos vermelhos colados à balaustrada
da varanda. Aproveitar do rés do chão, em geral mau, esta súbita vantagem de ser próximo de quem passa.
Depois, romanticamente, confirmei a transformação do betão em lar de gente viva, embora ninguém assomasse à janela, não fazia ideia se era homem, mulher, casal, sozinho, velho,novo, não interessa , a mensagem aproximou-nos como se fossemos familiares sem nos conhecermos, assim, acho que o 25 de Abril voltou a acontecer, da melhor maneira possível.HS
domingo, abril 26, 2020
segunda-feira, abril 13, 2020
domingo, abril 12, 2020
A arte como fuga
Henri Cartier-Bresson, Nice |
Teremos ganho muito para a ciência estética ao chegarmos não
só à compreensão lógica, mas também à imediata segurança da opinião de que o
progresso da arte está ligado à duplicidade do Apolínico e do Dionisíaco; de
maneira parecida com a dependência da geração da dualidade dos sexos, em lutas
contínuas e com reconciliações somente periódicas. Estes nomes tomamos
emprestados aos gregos, que manifestam ao inteligente as profundas ciências
ocultas da sua conceção artística não em ideias, mas nas figuras enérgicas e
claras do seu mundo mitológico. A ambas as divindades artísticas destes, Apolo
e Dionísio está ligado o nosso reconhecimento de que existe no mundo grego uma
enorme contradição, na origem e nos fins, entre a arte plástica — a de
Dionísio; — ambos os impulsos, tão diferentes, marcham um ao lado do outro, na
maior parte das vezes em luta aberta e incitando-se mutuamente para novos
partos, a fim de neles poder perpetuar a luta deste contraste, que a palavra
comum “arte” somente na aparência consegue anular; até que eles afinal, através
do milagroso ato metafísico do “desejo” helénico, aparecem unidos, produzindo
por fim, nesta união, a obra de arte, tanto dionisíaca quanto apolínica, da
Tragédia Ática.
Para melhor apreciarmos ambos os impulsos imaginemo-los,
antes de mais nada, como mundos de arte separados do sonho e da embriaguez;
fenómenos fisiológicos entre os quais é possível notar uma contradição como a
existente entre o apolínico e o dionisíaco. No sonho se apresentaram
primeiramente, segundo a opinião de Lucrécio, as esplêndidas figuras divinas às
almas humanas.
No sonho via o grande escultor a fascinante estrutura dos
membros de seres sobre-humanos, e o poeta helénico, inquirido sobre os segredos
da produção poética, seria da mesma forma lembrado ao sonho e teria dado
ensinamentos parecidos, como aos de Hans Sachs nos Mestres-Cantores:
Meu amigo, eis a obra do poeta,
Percebe seus sonhos e os interpreta.
Acredita, o verdadeiro, o humano destino
É-lhe mostrado ao sonhar:
Toda a arte poética e todo poetar,
Nada mais é que uma interpretação com tino.
O belo brilho dos mundos de sonho, em cuja produção o homem
é um artista perfeito, é condição de existência para toda arte plástica, e
também, como veremos, de uma parte essencial da poesia. Gozamos a imediata
compreensão da figura, todas as formas falam connosco, nada há de indiferente e
desnecessário. Na vida mais elevada desta verdade de sonho ainda temos o
sentimento transparente da sua aparência; pelo menos é esta a minha
experiência, para cuja continuidade e normalidade teria eu de citar diversos
testemunhos e os ditos dos poetas. O filósofo tem mesmo o pressentimento de que
também sob esta realidade em que vivemos e somos, se encontra oculta uma bem
diferente, e que portanto também ela é aparência; e Schopenhauer indica mesmo o
dom que a alguns homens todas as cousas parecem meros fantasmas ou sonhos,
como sinal de aptidão filosófica. Assim como o filósofo se porta, perante a
realidade da existência, assim se comporta o homem, artisticamente impressionável,
perante a realidade do sonho; ele gosta de contemplar, e contempla atentamente;
pois é por estas imagens que ele interpreta a vida, e com estes acontecimentos
se exercita para a mesma.
Friedrich Nietzsche, A Origem da tragédia, cap.4 p.20
quarta-feira, abril 08, 2020
Compreender o artista através da interpretação de uma obra?
1889, "Paisagem de Saint- Rémy", Fotografia de Saint-Paul-de- Mausole, hospício onde à época Van Gogh esteve internado, e "Vista de Saint- Rémy".
"Quanto mais nos aproximamos da nossa época, mais os documentos estão conservados. No caso de Avista de Saint-Rémy, de Van Gogh, é possível conhecer a paisagem que o inspirou, seguir pelos esboços e os desenhos a forma como a transformou, e chegar ao quadro, ou melhor, à série, de quadros que terminam esta trajectória criadora.
A paisagem é a que Van Gogh via da janela do pequeno atelier posto à sua disposição no asilo de loucos onde se encontrava em tratamento, após a grande crise de Arles. Uma fotografia mostra este local, que o tempo pouco modificou: o jardim provençal cercado por um murovelho, por detrás do qual estão escalonados os planos de árvores que conduzem às colinas do fundo. Tudo é triste, indiferente. Van Gogh começa a desenhar. A natureza não lhe interessa: o que lhe interessa é interrogar-se e projectar-se a si próprio, procurando reconhecer no mundo afigura do seu drama. A onda interior que o transtorna, erguendo-o a paroxismos de que tomba, recaindo na angústia, abandona-o precipitadamente. Como uma vaga que transborda, ela corre através do pequeno campo, e segue o seu curso louco, amedrontada, com ondulações rápidas de réptil assustado que foge de um perigo. Como nos pesadelos, o muro recua quase até ao horizonte; por detrás dele, a vegetação ferve e de repente ncendeia-se; os pinheiros estalam, as folhas lançam chamas para o ar. O próprio céu, maltratado pelos remoínhos amplificados, como ondas de uma deflagração, dissolve-se, num movimento giratório, em redor do seu centro, o sol.
Desta forma, os desenhos enunciaram o drama. Van Gogh aborda o quadro definitivo. As ondas, já postas em movimento, amplificam-se, o campo inteiro agita-se como um mar remexido por um vento de tempestade. As linhas incham, empurram-se e correm (...). O sol arrasta o seu giro sem fim o quadro nteiro, e as pinceladas não marcam senão os remoínhos do maelstrom que se amplifica indefenidamente; ele volta, tremendo de fúria e de angústia, para o universo que o evocou. O pintor, ponto de chegada do mundo, e ponto de partida da pintura, ergue-se no coração da arte."
René Huygue, Os poderes da imagem, Lx, Ed. 70
Este texto tem o poder de ser evocativo, de nos transportar para o que poderia ser a exaltação artística do pintor Van Gogh, não em abstrato, a exaltação de um pintor, que viveu um certo drama, naquele hospício de Saint Rémy. Como se pode compreender o proceso da criação através da interpretação das formas e dos elementos de um quadro concreto "A vista de Saint- Rémy"? Pensar a arte assumindo que esse pensamento é livre, no sentido de que pensar é antes de mais, fazer o mesmo movimento de criar, ver e sentir e depois encontrar uma forma de expressar o que vemos e o que sentimos, cientes de que o que vemos exalta de uma certa forma particular, o que sentimos. Nesse aspeto, concordo com Huygue, essa parece-me a única forma legítima e interessante de fazer crítica literária ou filosofia da arte, porque tenta mostrar a forma como cada um recria o que vê de acordo com a sua sensibilidade, não deixando contudo de o fundamentar em exemplos e narrativas verosímeis e igualmente apelativas, tanto quanto a obra de que se partiu. Por outro lado arrepia-me a posição que tende a compreender o processo psicológico da criação e a descrever as intenções do artista; é uma pretensão vã e enganadora, pois se dissermos o oposto da intenção de Van Gogh que o autor expõe neste texto, não ver-se na paisagem que vê, mas sim fugir de si, alienando-se na paisagem que vê, poderia ser igualmente verdadeiro, daí ser vã a pretensão de tentar captar as intenções do artista no acto criador, é como apanhar o ar.
Helena Serrão
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Van Gogh
terça-feira, abril 07, 2020
Arte
Baskiat
" As obras de Arte são de uma solidão infinita; para as abordar, nada pior do que a crítica. Só o amor pode prendê-las, conservá-las, ser justo para elas. Dê sempre razão ao seu própprio sentimento, contra essas análises, esses resumos, essas introduções, (...) Aos simples fiéis a Arte exige tanto como aos criadores." , dizia Rainer Maria Rilke, nas suas Cartas a um Poeta. Perante este aviso, deveremos desde já ficar suficientemente precavidos face às dificuldades emergentes de um território cujos contornos não são facilmente apropriáveis e cuja aparente "claridade" se arrisca a ser a "sombra" luminosa de uma outra obscuridade.
O fenómeno estético apresenta-se como uma estrutura multifacetada, plena de ambiguidades e de cargas simbólicas, local onde a Utopia, o Sonho e o Impossível irrompem quando menos se espera, surpreendendo a nossa sensibilidade demasiadamente fatigada pelas solicitações do quotidiano, confrontando o "entendimento" com situações e propostas que , não raro, se situam aquém e além da lógica da identidade e do terceiro excluído! porque não somos criadores, porque estamos predominantemente voltados para o campo da reflexão, arriscamo-nos a ficar condenados ao limiar do essencial, percorrendo epidermicamente a periferia, caracterizando mais e melhor aquilo que "não é" do que aquilo que "é".
Levi Malho, O Signo de Orfeu, Requiem por uma Estética Insular, (Porto, Edições Afrontamento, 1984), pp. 314-315.
domingo, abril 05, 2020
PORTUGUÊS
Se a língua ganha
a dimensão da escrita
E a escrita toma
a dimensão do mundo
Descer é preciso até ao fundo
na busca das raízes da saliva
que na boca vão misturar tudo
Mas há ainda a pressa do papel
que no tacto navega a brusca seda
Se a sede se disfarça sob a pele
descendo pela escrita essa vereda
E já se inventa
Enlaça
Ou se insinua
Se entrelaça a roca e o bordado
que as palavras tecendo
lado a lado
querem do país a alma nua
Aí podes parar
e retornar à boca
Esse espaço de beijo e de cinzel
Onde a fala retoma a língua toda
trocando a ternura
pelo fel
Um lado após o outro
a dimensão está dita
O tempo a confundir qualquer abraço
entre o visto e o escrito
Espelho e aço
Nesta fundura boa
e mar profundo
Para depois subir a pulso
O mundo
Maria Teresa Horta,
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Poesia
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