quarta-feira, novembro 29, 2023

Causalidade é um princípio da razão ou deriva do modo como nos acostumámos a ver as coisas acontecerem?


Foto: Seymour

"Se procurarmos a origem da ideia de causa, diz Hume, descobriremos que ela não pode ser uma qualidade particular inerente aos objetos; porque objetos dos mais variados tipos podem ser causas e efeitos. O que temos de procurar são relações entre objetos. De facto, descobrimos que as causas e os efeitos têm de ser contíguos entre si, e que as causas têm de ser anteriores aos seus efeitos. Mas isto não é suficiente; achamos ainda que tem de haver uma conexão necessária entre causa e efeito, embora a natureza desta conexão seja difícil de estabelecer.  Hume nega que tenha de haver uma causa para a existência de tudo aquilo que começa a existir.   Sendo todas as ideias distintas separáveis umas das outras, e sendo as ideias de causa e efeito evidentemente distintas, é fácil concebermos um objeto como não existente neste momento, e existente no momento seguinte, sem lhe juntarmos a ideia distinta de uma causa ou de um princípio produtivo.   É evidente que «causa» e «efeito» são termos correlativos, como o são «marido» e «mulher», e que todo o efeito tem de ter uma causa, da mesma maneira que todo o marido tem de ter uma mulher. Mas isto não prova que todos os acontecimentos tenham de ter uma causa, da mesma maneira que, do facto de todos os maridos terem de ter uma mulher, não se segue que todos os homens tenham de ter uma mulher. Tanto quanto sabemos, pode haver acontecimentos sem causas, tal como existem homens que não têm mulher.  Se não há qualquer absurdo em conceber que algo venha à existência ou seja sujeito a alterações sem uma causa, não há, a fortiori, qualquer absurdo em conceber que um acontecimento ocorra sem um tipo particular de causa. Sendo logicamente concebível que muitos efeitos diferentes resultem de uma causa particular, só a experiência pode levar-nos a esperar o efeito real. Mas com base em quê?  O que acontece, afirma Hume, é que observamos que indivíduos pertencentes a uma espécie são constantemente acompanhados por indivíduos pertencentes a outra. «A contiguidade e a sucessão não são suficientes para nos levarem a declarar que quaisquer dois objetos são causa e efeito, a não ser que observemos que estas duas relações são preservadas em diversos exemplos». Mas de que forma nos faz isto progredir? Se a relação causal não pode ser detetada num só exemplo, como pode ela ser detetada em diversos exemplos, se todos os exemplos semelhantes são independentes uns dos outros e não se influenciam uns aos outros?  A resposta de Hume é que a observação da semelhança produz uma nova impressão na mente. Tendo nós observado que um número suficiente de casos de B se seguem a A, sentimos uma determinação da mente em passar de A para B. É aqui que descobrimos a origem da ideia de conexão necessária. A necessidade «mais não é do que uma impressão interna da mente, ou uma determinação para levarmos os nossos pensamentos de um objeto para outro». A impressão da qual deriva a ideia de conexão necessária é a expectativa do efeito quando a causa se apresenta, expectativa essa que constitui uma impressão produzida pela conjunção habitual de ambos.  Por muito paradoxal que possa parecer, não é a nossa inferência que depende da conexão necessária entre causa e efeito, mas é a conexão necessária que depende da inferência que retiramos de uma para a outra. Hume oferece-nos, não uma, mas duas definições de causalidade. A primeira é a seguinte: uma causa é «um objeto precedente e contíguo a outro, sendo todos os objetos semelhantes ao primeiro colocados numa relação de semelhança e contiguidade com os objetos que se assemelham ao segundo». Nesta definição, nada se diz acerca da conexão necessária, e não é feita qualquer referência à atividade da mente. Assim sendo, é-nos apresentada uma segunda definição, mais filosófica que a primeira. Uma causa é «um objeto precedente e contíguo a outro, e de tal maneira unido a ele na imaginação que a ideia de um determina a mente a formar a ideia do outro, e a impressão de um outro.”

Anthony Kenny, História Concisa da Filosofia Ocidental,

REVISÃO CIENTÍFICA Desidério Murcho,  Sociedade Portuguesa de Filosofia

quarta-feira, novembro 22, 2023

A racionalidade desenvolve-se na sua falência

 


Bruce Davidson, rapariga segurando gato, 1947

Não há razão alguma para se estudar filosofia — afirma Hume — salvo a de que, para certos temperamentos, é esta uma maneira agradável de passar o tempo. «Em todos os incidentes da vida, deveríamos, não obstante, conservar o nosso ceticismo. Se acreditamos que o fogo aquece ou que a água refresca, isto é só porque nos dá muito trabalho pensar de outra maneira. Mais ainda: se somos filósofos, deveríamos sê-lo baseados unicamente nestes princípios céticos, e pela inclinação que sentimos no sentido de dedicar-nos a isso.» Se ele abandonasse a especulação, «sinto que eu sairia perdendo quanto ao prazer; e nisto está a origem de minha filosofia». 

A filosofia de Hume, verdadeira ou falsa, é a falência da racionalidade do século XVIII. Como Locke, começa com a intenção de ser sensorial e empírico, sem confiar em nada, mas procurando toda o conhecimento que lhe fosse possível obter por experiência e observação. Mas, possuidor de um intelecto melhor que o de Locke, um poder mais agudo de análise e uma menor capacidade em aceitar inconsistências cómodas, chega à desastrosa conclusão de que experiência e a observação nada ensinam. A crença racional não existe: «Se acreditamos que o fogo aquece ou que a água refresca, isto é só porque nos custa muito trabalho pensar de outra maneira.» Não podemos deixar de crer, mas nenhuma crença pode basear-se na razão. Tampouco uma linha de conduta pode ser mais razoável que outra, já que todas elas são, igualmente, baseadas em convicções irracionais. (…)

Era inevitável que tal refutação da racionalidade fosse seguida de uma grande erupção de fé irracional. A disputa entre Hume e Rousseau é simbólica: Rousseau era louco, mas influente; Hume era são, mas não tinha adeptos. Os empiristas britânicos rejeitaram-lhe o ceticismo sem refutá-lo; Rousseau e seus adeptos concordavam com Hume em que nenhuma crença se baseia na razão, mas consideravam o coração superior à razão permitindo que este os levasse a convicções muito diferentes das que Hume conservava na prática. Os filósofos alemães, de Kant a Hegel, não assimilaram os argumentos de Hume. Digo-o deliberadamente, apesar da crença que muitos filósofos partilham com Kant, de que a sua Crítica da Razão Pura era uma resposta a Hume. Na verdade, estes filósofos — pelo menos Kant e Hegel — representam um tipo de racionalismo “pré-humeano” e podem ser refutados com argumentos “humeanos”. Os filósofos que não podem ser refutados desta maneira são aqueles que não pretendem ser racionais, tais como Rousseau, Schopenhauer e Nietzsche. O desenvolvimento do irracional durante o século XIX e o que passou para o século XX é uma consequência natural da destruição, por Hume, do empirismo.

 É importante, por conseguinte, descobrir se há alguma resposta a Hume dentro de uma filosofia que é total ou principalmente empírica. Se não, não há diferença intelectual alguma entre a sanidade e a loucura. O lunático que se julga um ovo escaldado será condenado unicamente por estar em minoria, ou antes — já que não devemos ter como certa a democracia — por o governo não concordar com ele. Este é um ponto de vista desesperado, e devemos esperar que haja algum meio de nos  livrarmos dele.


Bertrand Russell, História da Filosofia Ocidental (1946), Lx, Relógio D'Água (2017), p.550,551

quarta-feira, novembro 15, 2023

Aprender fazendo não pode ser o único modo de aprender, nem deve ser o mais aplicado.


 Fotografia: Diane Arbus, Miúdos dentro dum casaco, Nova Iorque, 1967

Sob a influência da psicologia moderna e das doutrinas pragmáticas, a pedagogia tornou-se uma ciência do ensino em geral ao ponto de se desligar completamente da matéria a ensinar. O professor – assim nos é explicado – é aquele que é capaz de ensinar qualquer coisa. A formação que recebe é em ensino e não no domínio de um assunto particular. (…) Porque o professor não tem necessidade de conhecer a sua própria disciplina, acontece frequentemente que ele sabe pouco mais do que os alunos. O que daqui decorre é que, não somente os alunos são abandonados aos seus próprios meios, como ao professor é retirada a fonte legítima da sua autoridade enquanto professor. Pense-se o que se pensar, o professor é ainda aquele que sabe mais e é mais competente. Em consequência, o professor não autoritário, aquele que contando com a autoridade que a sua competência lhe poderia conferir, quereria abster-se de todo o autoritarismo, deixa de poder existir.

Foi uma moderna teoria da aprendizagem que permitiu à pedagogia e às escolas normais desempenhar esse pernicioso papel na atual crise da educação. Essa teoria é, muito simplesmente, a aplicação lógica da nossa terceira ideia-base, ideia que foi durante séculos sustentada no mundo moderno e que encontrou a sua expressão conceptual sistemática no pragmatismo. Essa ideia-base é a de que não se pode saber e compreender senão aquilo que se faz por si próprio. 

A aplicação à educação desta ideia é tão primitiva quanto evidente: substituir, tanto quanto possível, o aprender pelo fazer. Considera-se pouco importante que o professor domine a sua disciplina porque se pretende compelir o professor ao exercício de uma atividade de constante aprendizagem para que, como se diz, não transmita um “saber morto” mas, ao contrário, demonstre constantemente esse saber. A intenção confessada não é de ensinar um saber mas a de inculcar um saber-fazer. (…)

Considera-se o jogo como o mais vivo modo de expressão e a maneira mais apropriada para a criança se conduzir no mundo, a única atividade que brota espontaneamente da sua existência de criança. Só aquilo que pode aprender através do jogo corresponde à sua vivacidade. Aprender, no velho sentido da palavra, forçando a criança a adotar uma atitude de passividade, obrigá-la-ia a abandonar a sua própria iniciativa que não se manifesta senão no jogo.

O ensino das línguas ilustra diretamente a estreita ligação entre estes dois pontos: a substituição do aprender pelo fazer e do trabalho pelo jogo. A criança deve aprender falando, quer dizer, fazendo, e não pelo estudo da gramática e da sintaxe. (…) é perfeitamente claro que este método procura deliberadamente manter a criança mais velha, tanto quanto possível, num nível infantil. Aquilo que, precisamente, deveria preparar a criança para o mundo dos adultos, o hábito adquirido pouco a pouco de trabalhar em vez de jogar, é suprimido em favor da autonomia do mundo da infância.

Qualquer que seja a ligação existente entre o fazer e o saber, ou qualquer que seja a validade da fórmula pragmática, a sua aplicação à educação, isto é, ao modo como a criança aprende, tende a fazer da infância um mundo absoluto. Também aqui, sob pretexto de respeitar a independência da criança, ela é excluída do mundo dos adultos para ser artificialmente mantida no seu, tanto quanto este pode ser designado um mundo.”

Hannah Arendt, Entre o passado e o futuro (1954/1968), A Crise na educação, Lx, Relógio D’Água, 2006, p.192,193,194.

«The crisis in Education» foi pela primeira vez publicado na Partisan Review, 25, 4 (1957),

Arendt escreveu este texto em 1957 na América, eu comecei a dar aulas trinta anos depois. Será atual? As inovações em educação são um contínuo rio que nela desagua, atualidade na era da internet é uma submersão, tão pouco a podemos entender como tal, as chamadas "tecnologias digitais" , o rio  que corre, sempre no momento seguinte, são também exemplo perfeito desta filosofia pragmática do jogo na aprendizagem, do fazer autónomo dos alunos. Mas será essa autonomia verdadeiramente  desenvolvida com este tipo de pedagogia? Refiro-me aos programas digitais, com tutoriais de aprendizagem onde os alunos vão passando etapas até ao resultado final, como se jogassem um jogo de Geografia ou de outra disciplina. No jornal Expresso, desta sexta, dia 10 de Novembro, havia um artigo sobre ocorrências recentes no ensino universitário. Os professores universitários queixavam-se de receber comunicações dos pais dos alunos a exigirem explicação pelas notas dos seus filhos, como se ainda fossem os responsáveis pela educação de homens e mulheres de 20 anos. Infantilização. Sabe-se também que os alunos não prestam atenção nas aulas e que os computadores sempre acesos são muitas vezes um bom pretexto para estar a jogar enquanto o professor ensina. Como professora do ensino secundário defronto-me com esse problema mas, vamos… os alunos são obrigados a estar nas aulas, são adolescentes... mas a metáfora do rio está de novo a adaptar-se aqui, deixamos fluir, e os alunos transportam os mesmos comportamentos de indisciplina, e de desinteresse para todo o lado onde se deparem com algo mais difícil ou "secante". Se nunca proibirmos esses comportamentos, consentimos, e se consentimos agora, esses procedimentos instalam-se, mesmo quando os alunos são adultos, continuando nesse estado de permissividade da iniciativa infantil que, em jovens adultos, é anacrónica e contraproducente. HS

quinta-feira, novembro 02, 2023

A obrigação de ajudar


 Síria 2014

Suponhamos que me apercebo de que uma criança caiu a um lago e está em risco de se afogar. Alguém duvida que eu devia entrar no lago e tirar de lá a criança? Isso implicaria ficar com a roupa cheia de lama entre outros inconvenientes; no entanto, em comparação com a morte evitável da criança, isso é insignificante. Um princípio plausível que apoiaria o juízo de que devo tirar a criança do lago é o seguinte: se estiver nas nossas mãos evitar que aconteça um grande mal, sem com isso sacrificarmos nada de importância moral comparável, devemos fazê lo. […] Se este princípio fosse levado a sério e orientasse as nossas ações, a nossa vida e o nosso mundo sofreriam uma transformação radical. Porque o princípio aplica-se não apenas às raras situações em que alguém pode salvar uma criança de morrer afogada num lago, mas à situação quotidiana em que podemos ajudar quem vive na pobreza absoluta. Ao dizer isto, parto do princípio de que a pobreza absoluta, com fome e subnutrição, falta de abrigo, analfabetismo, doença, mortalidade infantil elevada e curta esperança de vida, é uma coisa má. E parto do princípio de que está ao alcance dos ricos minorar a pobreza absoluta sem sacrificar nada de importância moral comparável. Se estes dois pressupostos e o princípio que discutimos estão corretos, temos a obrigação de ajudar quem vive na pobreza absoluta, obrigação que não é menor que a nossa obrigação de salvar uma criança de se afogar num lago. Não ajudar seria um mal, seja ou não intrinsecamente equivalente a matar. Ajudar não é, como se pensa habitualmente, um ato de caridade digno de elogio, mas que não é um mal omitir; é algo que todos deviam fazer.


Peter Singer, Ética Prática, Gradiva, pp. 250 -251