sábado, novembro 27, 2021

A filosofia como uma ciência da natureza humana?


 Rene Magritte, Bélgica (1898/1967) Imagem do quadro "A arte de viver"


Quando Hume começou a escrever o "Tratado sobre a Natureza humana" , já tinha mergulhado nas obras dos filósofos modernos tendo-as achado perturbadoras porque cometiam os mesmos erros que os antigos cometiam, quando pretendiam evitá-los. Hume pergunta por que os filósofos não foram capazes de fazer o progresso espetacular na compreensão da natureza humana que os filósofos naturais - a quem agora chamamos de "cientistas" - alcançaram recentemente nas ciências físicas? A sua resposta é que, embora os cientistas se tenham curado da sua "paixão por hipóteses e sistemas", os filósofos ainda não se tinham purificado dessa tentação. As suas teorias eram especulativas demais, baseavam-se em suposições a priori e prestavam muito pouca atenção ao modo como a natureza humana realmente é. Em vez de nos ajudar a compreender a nós mesmos, os filósofos modernos estavam atolados em disputas intermináveis - evidentes até mesmo para os que nada percebiam desses assuntos - dando origem ao "preconceito comum contra raciocínios metafísicos de todos os tipos", ou seja, "todo tipo de argumento que é de alguma forma obscuro e requer atenção para ser compreendido ”. Para progredir, afirma Hume, precisamos “rejeitar todo sistema por mais sutil ou engenhoso que seja, que não se baseie em factos e observações”. Esses sistemas, cobrindo uma ampla gama de visões metafísicas e teológicas arraigadas e influentes, pretendem ter descoberto princípios que nos dão um conhecimento mais profundo e seguro da realidade última. Mas Hume argumenta que na tentativa de ir além de qualquer coisa que possamos experimentar, essas teorias metafísicas tentam "penetrar em assuntos totalmente inacessíveis ao entendimento", afirmam ter encontrado os "princípios últimos" da natureza humana mas essas são afirmações não apenas falsas, mas também ininteligíveis. Essas “ciências aéreas”, como Hume lhes chama, têm apenas o “ar” de ciência (EHU 1.12 / 12).

Pior ainda, esses sistemas metafísicos são cortinas de fumo para “superstições populares” que tentam oprimir-nos com medos e preconceitos religiosos (EHU 1.11 / 11). Hume tem em mente uma variedade de doutrinas que precisam de cobertura metafísica para parecerem respeitáveis ​​- argumentos para a existência de Deus, a imortalidade da alma e a natureza da providência divina. A metafísica auxilia e estimula essas e outras doutrinas supersticiosas. Mas insiste que, embora esses sistemas metafísicos e teológicos sejam questionáveis, isso não significa que devemos desistir de fazer filosofia. Em vez disso, precisamos avaliar “a necessidade de levar a guerra até aos cantos mais secretos do inimigo”. A única maneira de resistir ao fascínio dessas pseudociências é comprometer-se com elas, contrariando o seu “jargão… metafísico obscuro” com “raciocínio preciso e justo” (EHU 1.12 / 12). Isso significa que a fase inicial do projeto de Hume deva ser crítica. Uma parte proeminente dessa vertente do seu projeto é “descobrir o campo apropriado da razão humana” - determinar a extensão e os limites dos poderes e capacidades da razão. Acredita que a sua investigação mostrará que a metafísica como  busca pela compreensão da natureza última da realidade está além do alcance da razão.

 

[1] [EHU] Enquiry concerning Human Understanding, edited by Tom L. Beauchamp, Oxford/New York: Oxford University Press, 1999.

Texto retirado de  Stanford Encyclopedia of philosophy, artigo publicado 26 de Fevereiro de 2001; revisto em 27 Abril de 2019 da autoria de William Edward Morris e Charlotte R. Brown 

 

terça-feira, novembro 02, 2021

O filósofo é, antes de tudo, um homem


Fotografia Alex Webb

O mero filósofo é geralmente uma personalidade pouco admissível no mundo, pois supõe -se que ele em nada contribui para o benefício ou para o prazer da sociedade, porquanto vive distante de toda comunicação com os homens e envolto em princípios e noções igualmente distantes da sua compreensão. Por outro lado, o mero ignorante é ainda mais desprezado, pois não há sinal mais seguro de um espírito grosseiro, numa época e numa nação em que as ciências florescem, do que permanecer inteiramente destituído de toda espécie de gosto por estes nobres entretenimentos. Supõe-se que o caráter mais perfeito se encontra entre estes dois extremos: conserva igual capacidade e gosto para os livros, para a sociedade e para os negócios; mantém na conversação, discernimento e delicadeza que nascem da cultura literária; nos negócios, a probidade e a exatidão que resultam naturalmente de uma filosofia conveniente. (…) 

O homem é um ser racional e, como tal, recebe da ciência a sua adequada nutrição e alimento. Mas os limites do entendimento humano são tão estreitos que pouca satisfação se pode esperar neste particular, tanto pela extensão como pela segurança das suas aquisições. O homem é um ser sociável do mesmo modo que racional. No entanto, nem sempre pode usufruir de uma companhia agradável e divertida ou conservar o gosto adequado para ela. O homem é também um ser ativo, e esta tendência, bem como as várias necessidades da vida humana, submete-o necessariamente aos negócios e às ocupações; todavia, o espírito precisa de algum repouso, já que não pode manter sempre a sua inclinação para o cuidado e o trabalho. Parece, pois, que a Natureza indicou um género misto de vida como o mais apropriado à raça humana, e que ela secretamente advertiu os homens de não permitirem a nenhuma destas tendências arrastá-los em demasia, de tal modo que os torne incapazes para outras ocupações e entretenimentos. Tolero a vossa paixão pela ciência, diz ela, mas fazei com que vossa ciência seja humana de tal modo que possa ter uma relação direta com a ação e a sociedade. Proíbo-vos o pensamento abstruso e as pesquisas profundas; punir-vos-ei severamente pela melancolia que eles introduzem, pela incerteza sem fim na qual vos envolvem e pela fria receção que os vossos supostos descobrimentos encontrarão quando comunicados. Sede um filósofo, mas, no meio de toda vossa filosofia, sede sempre um homem.

David Hume, Ensaio sobre o entendimento humano, Secção I, Nova Acrópole,

Tradução Anoar Aiex, 

quarta-feira, outubro 20, 2021

Contra o relativismo no conhecimento

 

Dança, uma composição sem objeto de Alexander Rodchenko, 1915


 A 22 de outubro de 1996, The New York Times publicou uma inusitada matéria de primeira página. Intitulada “Indian Tribe’s Creationists Thwart Archeologists” (“Criacionistas indígenas tribais contradizem arqueólogos”), descrevia um conflito que surgira entre duas opiniões sobre as origens das populações nativas americanas. Segundo a tese arqueológica dominante, amplamente confirmada, os humanos chegaram inicialmente à América pela Ásia, atravessando o estreito de Bering há cerca de 10 mil anos atrás. Em contrapartida, alguns mitos criacionistas dos nativos americanos sustentam que os povos nativos vivem na América desde que os seus antepassados emergiram pela primeira vez na superfície da Terra, vindos de um mundo subterrâneo de espíritos. (…) O New York Times prosseguia observando que vários arqueólogos, dilacerados entre seu compromisso com o método científico e seu apreço pela cultura nativa, “têm sido empurrados rumo a um relativismo pós-moderno no qual a ciência é apenas mais um sistema de crenças”. Roger Anyon, arqueólogo britânico que trabalhou para o povo Zuni, foi citado como tendo dito: A ciência é apenas uma das várias maneiras de se conhecer o mundo. [A visão de mundo dos Zunis é] tão válida quanto o ponto de vista arqueológico sobre o que é a pré-história. Outro arqueólogo, o doutor Larry Zimmermann, da Universidade de Iowa, reivindicava um tipo diferente de ciência, entre as fronteiras dos modos de conhecimento ocidentais e os modos de conhecimento indígenas. E o doutor Zimmermann acrescentava: Eu pessoalmente rejeito a ciência como um modo privilegiado de ver o mundo.

Por mais surpreendentes que sejam, essas observações seriam de interesse apenas superficial, não fosse a enorme influência da perspetiva filosófica geral que representam. Principalmente dentro da academia, mas também e inevitavelmente, em certa medida, fora dela, tem-se enraizado a ideia de que existem “várias maneiras igualmente válidas de conhecer o mundo”, com a ciência sendo apenas uma delas. Em vastos setores das humanidades e das ciências sociais, essa espécie de “relativismo pós- moderno” sobre o conhecimento conquistou o status de ortodoxia. Vou chamá-lo (do modo mais neutro possível) de doutrina da igual validade: "Existem vários modos de se conhecer o mundo, radicalmente diferentes porém 'igualmente válidos', e a ciência é apenas um deles". Eis alguns exemplos representativos de pensadores que aceitam o pensamento básico por trás da igual validade:

Na medida em que reconhecemos o estatuto convencional e artefactual das nossas formas de conhecimento, tornamo-nos capazes de perceber que nós próprios, e não a realidade, somos os responsáveis pelo que sabemos.1

A ciência do primeiro mundo é uma ciência entre outras...

Para o relativista, não faz sentido a ideia de que algumas regras ou crenças são realmente racionais, distintas daquelas que são aceites como racionais apenas localmente. Uma vez que e não pensa haver normas de racionalidade supraculturais ou livres de contexto, não vê as crenças sustentadas racionalmente ou irracionalmente como duas classes de coisas distintas e qualitativamente diferentes.3

Existem muito mais trechos como estes que poderiam ser citados. O que há na doutrina da igual validade tem que parece tão radical e contraintuitivo? Bem, normalmente pensamos que, numa questão factual como a da pré-história americana, existe um modo de ser das coisas que é independente de nós e das nossas crenças sobre isso – um facto objetivo sobre a questão, por assim dizer, quanto ao lugar de onde se originaram os primeiros americanos.

Não somos necessariamente objetivistas factuais nesse sentido acerca de todos os domínios de juízo. Acerca da moral, por exemplo, algumas pessoas, incluindo filósofos, tendem a ser relativistas: sustentam que existem diversos códigos morais alternativos que especificam o que se considera uma conduta boa ou má, mas que não existem fatos em virtude dos quais alguns desses códigos sejam mais “corretos” do que qualquer um dos outros.

Outros podem ser relativistas acerca da estética, acerca do que é considerado como belo ou artisticamente valioso. Esses tipos de relativismo sobre questões de valor são sujeitos ao debate, é claro, e ainda são debatidos. No entanto, ainda que os consideremos em última instância implausíveis, não nos chocam de imediato como absurdos. Mas quando se trata de uma questão factual como a das origens dos primeiros americanos, tendemos a pensar, sem dúvida, que existe alguma objetividade na matéria. Podemos não saber qual é essa objetividade, mas, tendo formado um interesse na matéria, buscamos conhecê-la. E dispomos de uma variedade de técnicas e métodos - observação, lógica, inferência para a melhor explicação e assim por diante, mas não a leitura de folhas de chá ou o olhar para uma  bola de cristal - que consideramos ser os únicos modos legítimos de formar crenças racionais sobre o assunto. Esses métodos - os métodos característicos do que chamamos “ciência”, mas que também caracterizam também os modos normais de procurar conhecimento – conduziram-nos à ideia de que os primeiros americanos vieram da Ásia através do estreito de Bering. Essa ideia pode ser falsa, é claro, mas é a mais razoável, dadas as evidências - ou assim somos geralmente levados a pensar.

Porque acreditarmos em tudo isto, acatamos as conclusões da ciência: atribuímos-lhe um papel privilegiado na determinação do que ensinar aos nossos filhos na escola, o que se aceita como probatório nos nossos tribunais e o que serve de base às nossas políticas sociais. Consideramos que existe um facto objetivo quanto ao que é verdadeiro. Queremos aceitar somente aquilo sobre o qual há boas razões para acreditarmos ser verdadeiro; e consideramos a ciência como o único bom caminho para chegarmos a crenças razoáveis acerca do que é verdadeiro, pelo menos no reino do puramente factual. Por isso, acatamos a ciência. Para que esse tipo de acatamento à ciência seja correto, no entanto, o conhecimento científico deve ser privilegiado -não pode ser o caso de haver vários outros modos de conhecimento, radicalmente diferentes mas igualmente válidos, com a ciência sendo apenas um deles. Pois se a ciência não fosse privilegiada, precisaríamos conceder tanta credibilidade à arqueologia quanto ao criacionismo Zuni, tanta credibilidade à evolução quanto ao criacionismo cristão - precisamente a opinião defendida por um número crescente de pensadores da academia, e crescentemente ecoada por pessoas de fora dela.

Paul Boghossian, O Medo do conhecimento,Gradiva,2015

 

terça-feira, setembro 28, 2021

Interessante e Intenso, assim distinguia Kierkegaard o indivíduo estético do que, por uma forma geral de entender a vida, se identificaria com um religioso. Admito que não é possível, mesmo consciente da necessidade de projetar uma mente aberta e estranha a chavões, que esta distinção nos identifique ou ilumine de algum modo. Isto porque intenso é o café, aroma intenso, e interessante é alguém culto ou apenas uma mulher que não pintando o cabelo e assumindo certas poses, o pareça. O religioso será intenso certamente. Se buscarmos imagens de autos de fé e outras atrocidades que assumimos como passadas e negamos que possam ser revividas, mesmo quando à nossa frente o são, actos de crueldade a coberto de qualquer religião oficial ou clandestina não deixam de ser intensos, mas são sobretudo atos de crueldade sem uma razão admissível. Sabemos quanto as religiões tendem a criar as suas proprias razões; para quem está de fora, são apenas, não razões, quanto mais admissíveis. Pensar esteticamente e entender os valores a partir da sua agradabilidade à vista ou paladar parece-me promissor embora insatisfatório, mas identificar intenso com culinária ou desprezá-lo pela sua perigosidade ou associação a negativas imagens de paixão religiosa, parece-me superficial. É como se os valores fossem como os hamburguers da McDonalds, lavados com hidróxido de amónia, desidratados, pasteurizados entregues à graciosidade que hoje é o valor dos valores, o bem maior. Saúde. No começo deste ano letivo podemos contrariar a tendência de retirar às palavras a sua perigosidade eminente. Propor conceitos intensos, com alto grau de perigosidade como, paixão? Este discurso tem toda a aparência de um discurso anti-filosófico, neste momento, filosofia é dissecação racional no sentido mais de dissecação (lavagem?) do que chamada á racionalidade, pois razões nós encontramos para continuar a pensar com paixão. Intensamente. Helena Serrão.

domingo, setembro 19, 2021

A civilidade ou como começar o novo ano.




A civilidade é uma questão de costumes, etiqueta, urbanidade, ritos informais que facilitam as nossas interacções e, dessa forma, nos fornecem modos de nos tratarmos mutuamente com consideração.Cria espaço social e psicológico para as pessoas viverem as suas vidas e fazerem as suas escolhas. Os jovens que cospem para o passeio e praguejam nos autocarros revelam sintomas meramente superficiais de incivilidade. Mais grave é a violação da privacidade por parte dos jornais sensacionalistas e as incursões em áreas da vida pessoal irrelevantes para as questões públicas - por exemplo, revelações acerca da vida sexual dos políticos. A nossa época é, efectivamente, moralista. Nauseantemente moralista. E isso constitui grande parte do problema, uma vez que as atitudes moralistas são intolerantes, e a intolerância é uma das piores descortesias. Exigir a cortesia é, de certa forma, exigir muito pouco: "Devemos ser corteses com um homem da mesma forma  como o somos com um quadro, ao qual estamos dispostos a conceder o benefício de uma boa luz", dizia Emerson.
A perda de civilidade significa que o sentimento social foi substituído pela defensiva, com os grupos a reunir-se em torno de conceitos de identidade nacionalista, étnica e religiosa, erigindo barreiras contra os outros e, assim protegendo-se a si mesmos. A sociedade fragmenta-se em subgrupos cujos membros esperam assim escudar-se do egoísmo e desconsideração cáusticos dos outros.
"Há uma cortesia do coração que possui um carácter semelhante ao amor. Dela nasce a cortesia mais pura, no comportamento exterior", disse Goethe (...) a civilidade promove uma sociedade que se comporta bem em relação a si mesma, cujos membros respeitam o valor intrínseco do indivíduo e os direitos das pessoas diferentes de si.

A.C. Grayling, O Significado das coisas, Gradiva,Lx, 2002, pp.28,29

quarta-feira, julho 14, 2021

Autoridade

 


Fotograma do filme "L'enfant sauvage"

Sobre a base de um esclarecido conceito de razão e liberdade, o conceito de autoridade pôde converter-se simplesmente no contrário de razão e liberdade, ou seja, no conceito da obediência cega. Este é o significado que conhecemos a partir do uso linguístico da crítica às modernas ditaduras. Todavia, não é essa a essência da autoridade. Na verdade, a autoridade é, em primeiro lugar, um atributo de pessoas. Mas a autoridade das pessoas não tem o seu fundamento último num ato de submissão e de abdicação da razão, mas num ato de reconhecimento e de conhecimento: reconhece-se que o outro está acima de nós em juízo e perspetiva e que, por consequência, o seu juízo precede, ou seja, tem primazia em relação ao nosso juízo. Acrescentando o facto de que a autoridade não se outorga, adquire-se, e tem de ser adquirida se a ela se quer apelar. Repousa sobre o reconhecimento e, portanto, sobre uma ação da própria razão que, tornando-se consciente de seus próprios limites, atribui a outro uma perspetiva mais acertada. Este sentido retamente entendido de autoridade não tem nada a ver com obediência cega de comando. Na realidade, autoridade não tem nada a ver com obediência, mas com conhecimento. (…)

Sem dúvida que poder dar ordens e encontrar obediência é parte integrante da autoridade. Mas isso somente provém da autoridade que alguém tem. Inclusive a autoridade anónima e impessoal do superior, que deriva das ordens, não procede, em última instância, dessas ordens, mas torna-as possíveis. O seu verdadeiro fundamento é, também aqui, um ato da liberdade e da razão, que concede autoridade ao superior basicamente porque possui uma visão mais ampla ou é mais consagrado, ou seja, porque sabe melhor. É assim que o reconhecimento da autoridade está sempre ligado à ideia de que o que a autoridade diz não é uma arbitrariedade irracional, mas algo que pode, preponderantemente, ser inspecionado. É nisso que consiste a essência da autoridade que se exige ao educador, ao superior, ao especialista.

Sem dúvida que os preconceitos implantados se encontram legitimados pela pessoa. A sua validez requer uma predisposição para com a pessoa que os representa. Mas é exatamente assim que se convertem em preconceitos objetivos, pois operam a mesma predisposição para com uma coisa, que pode ser produzida por outros caminhos, por exemplo, por bons motivos que a razão torna válidos. Nesse sentido a essência da autoridade pertence ao contexto de uma teoria de preconceitos que tem de ser libertada dos extremismos do Aufklarung. Para isso podemos nos apoiar na crítica romântica ao Aufklarung.

 Pois existe uma forma de autoridade que foi particularmente defendida pelo romantismo: a tradição. O que é consagrado pela tradição e pela herança histórica possui uma autoridade que se tornou anónima, e o nosso ser histórico e finito está determinado pelo fato de que também a autoridade do que foi transmitido, e não somente o que possui fundamentos evidentes, tem poder sobre essa base, e, mesmo no caso em que, na educação, a "tutela" perde a sua função com o amadurecimento da maioridade, momento em que as próprias perspetivas e decisões assumem finalmente a posição que detinha a autoridade do educador, esta chegada da maturidade vital-histórica não implica, de modo algum, que nos tornemos senhores de nós mesmos no sentido de nos havermos libertado de toda herança histórica e de toda tradição. A realidade dos costumes, p. ex., é e continua sendo, em vastos âmbitos, algo válido a partir da herança histórica e da tradição. Os costumes são adotados livremente, mas não criados por livre inspiração nem a sua validade nela se fundamenta. É isso, precisamente, que denominamos tradição: o fundamento da sua validade. E a nossa dívida para com o romantismo é justamente essa correção do Aufklarung, no sentido de reconhecer que, à margem dos fundamentos da razão, a tradição conserva algum direito e determina amplamente as nossas instituições e comportamentos.”

Hans-Georg Gadamer, Verdade e Método, Petropolis,1999, Editora Vozes, p.419, 420, 421

 

segunda-feira, junho 14, 2021

Filosofia?


Salvador Dali 

O que há de belo na filosofia? Como captar essa beleza e como partilhá-la com os alunos? Como conciliar a beleza da filosofia com um programa muito padronizado e estruturado? São essas as questões que me coloco quando estou prestes a terminar mais um ano letivo. Gostaria de tentar responder de forma substantiva e breve a estas três questões sem me autoimolar ou enveredar por vias catastróficas que concluem de forma implícita e inviesada que tudo está perdido. É certo que ao longo do percurso destes laboriosos anos de ensino público massificado, perdemos muitas coisas que nos eram caras e nos serviam de bussola; uma delas é que perdemos parte da autoridade como transmissores de conhecimento, mas penso que o próprio conhecimento perdeu parte da sua autoridade.Parto da crença de que ensinar é, sobretudo, transmitir conhecimentos. É uma crença defensável, basta-me. A beleza da filosofia reside, na minha modesta opinião, na forma como alguns filósofos encontraram sentidos diversos para o mundo e os problemas ancestrais que o homem encontrou ou criou nesse mundo.Problemas que estão presentes no actual programa tais como: Se somos livres ou se há um destino ou uma determinação; se existe ou não um Deus; se podemos confiar na moral; se poderá ou não haver um conhecimento objetivo. Como compreender os vários sentidos dados aos problemas é fulcral para compreender os problemas pois eles não estão desenraízados do próprio mundo histórico em que cada pensador os coloca e lhes tenta dar uma solução.  A razão não é certamente a mesma em todos os momentos, não temos a visão do que é ou não é senão dentro de determinadas crenças que são as crenças comuns da nossa época. Portanto, a compreensão do pensamento dos autores enquadrados na sua época, a sua forma de expressão, exige uma hermenêutica, é preciso e engenhosamente imperioso voltar a ler os textos com os alunos e retirar deles a visão do autor analisada por visões posteriores e necessariamente limitadas; as nossas. Creio que é nesse diálogo a que os textos nos obrigam quando nos interpelam, que se constrói e se antevê um pouco da beleza da filosofia.

A padronização argumento/objeção com que o programa de filosofia pretende moldar a prática da filosofia e em que os professores se veem imersos num ensino que acaba por dar uma noção de uma razão capaz a todos os momentos de reclamar do dito e antepor problemas mesmo antes de compreender a sua dimensão, uma espécie de necessidade histérica de crítica sem dar tempo às ideias amadurecerem e aos sistemas de mostrarem a sua consistência, tem como consequência um saber fragmentado e como princípio um relativismo insuperável e endémico. Primeiro sabemos e depois criticamos ou perguntamos como e porquê, assim e não de outro modo pois há mundos nos modos de entender. Essa procura de modos/mundos de entender é o alimento da crítica e a beleza da filosofia porque só assim nesse confronto podemos intuir o que há de diferente no nosso modo e desenhar o alcance das nossas mais profundas crenças.

HS

sábado, abril 24, 2021

Aposta de Pascal


Escultura de Blaise Pascal, Augustin Pajou (1730–1809), Louvre

Se existe um Deus, ele é infinitamente incompreensível, visto que não tendo partes nem limites, ele não tem relação conosco. Portanto, somos incapazes de saber o que é ou se é. No entanto, quem se atreverá a resolver esta questão? Não somos nós que não temos nada a ver com ele. Quem culpará os cristãos por não serem capazes de justificar a sua afirmação, aqueles que professam uma religião da qual não podem dar qualquer justificação? Eles declaram, expondo ao mundo, que isso é um absurdo, stultitiam: e então todos reclamam do que eles não provam. Se provassem o que dizem, não manteriam a sua palavra. É na falta de provas que ganham sentido. 

- Sim, mas embora isso desculpe aqueles que assim oferecem a sua crença, e lhes tire a culpa de produzi-la sem razão, não isenta aqueles que a recebem. 

Examinemos então este ponto dizendo: Deus é ou não é. Mas para que lado nos vamos inclinar? A razão não pode determinar nada. Existe um caos sem fim que nos separa. Um jogo está sendo jogado no final desta distância infinita, onde se sairá com cruz ou coroa. O que vamos apostar? Racionalmente não o podemos fazer.Não há razões para defender um ou outro.

Não acuseis, pois, de falsidade os que fizeram uma escolha, pois nada sabeis disso. "Não: mas,  acusa-los-ei de terem feito, não essa escolha, mas uma escolha; porque, tanto o que prefere coroa ou o outro que prefere cruz, estão ambos em falta: o justo é não apostar".

Sim, mas é preciso apostar: não é voluntário; sois obrigados a isso; (e apostar que Deus é, ou  apostar que ele não é). Que escolha fareis, pois? Vejamos, já que é preciso escolher, vejamos o que menos vos interessa: tendes duas coisas a perder, o verdadeiro e o bem, e duas coisas que devem ser comprometidas no jogo, a razão e a vontade, o conhecimento e a beatitude; e duas coisas que evitar, o erro e a miséria. A razão não é atingida, pois que é preciso, necessariamente, escolher, escolhendo um dentre os dois. Eis um ponto liquidado; mas, e a  vossa beatitude?

Pesemos o ganho e a perda, preferindo coroa, que é Deus. Estimemos as duas hipóteses: se ganhardes, ganhareis tudo; se perderdes, nada perdereis. Apostai, pois, que ele é, sem hesitar. Isso é admirável: sim, é preciso apostar, mas, talvez eu aposte demais.

Vejamos. Uma vez que é tal a incerteza do ganho e da perda, se só tivésseis que apostar duas vidas por uma, ainda poderíeis apostar. Mas, se devessem ser ganhas três, seria preciso jogar (desde que tendes necessidade de jogar) e seríeis imprudente quando, forçado a jogar, não arriscásseis vossa vida para ganhar três num jogo em que é tamanha a incerteza da perda e do ganho. Há, porém, uma eternidade de vida e de felicidade; e, assim sendo, se houvesse uma infinidade de probabilidades, das quais somente uma fosse para vós, ainda teríeis razão em apostar um para ter dois, e agiríeis mal, quando obrigados a jogar, se recusásseis jogar uma vida contra três num jogo em que, numa infinidade de probabilidades, há uma para vós, havendo uma infinidade de vida infinitamente feliz que ganhar. Mas, há aqui uma infinidade de vida infinitamente feliz que ganhar, uma probabilidade de ganho contra uma porção finita de probabilidades de perda, e o que jogais é finito. Jogo é jogo: sempre onde há o infinito e onde não há infinidade de probabilidades de perda contra a de ganho, não há que hesitar, é preciso dar tudo; e, assim, quando se é forçado a jogar, é preciso renunciar à razão, para conservar a vida e não arriscá-la pelo ganho infinito tão prestes a chegar quanto a perda do nada.

Por conseguinte, de nada serve dizer que é incerto ganhar-se e que é certo arriscar-se, e que a infinita distância entre a certeza do que se expõe e a incerteza do que se deve ganhar iguala o bem finito, que certamente se expõe, ao infinito incerto. Não é assim: todo jogador arrisca com certeza para ganhar incertamente o finito, sem pecar contra a razão. Não há infinidade de distância entre essa certeza do que se expõe e a incerteza do ganho; isso é falso. Há, na verdade, infinidade entre a certeza de ganhar e a certeza de perder. Mas, a incerteza de ganhar é proporcional à certeza do que se arrisca, segundo a proporção das probabilidades de ganho e de perda; de onde se conclui que, havendo tantas probabilidades de um lado como do outro, a aposta deve ser igual; e, então, a certeza do que se expõe é igual à incerteza do ganho; bem longe está de ser infinitamente distante. E, assim, a nossa proposição é de uma força infinita, quando há o finito que arriscar num jogo em que há tantas probabilidades de ganho como de perda, e o infinito que ganhar. Isso é demonstrativo; e, se os homens são capazes de algumas verdades, essa é uma delas.

Pascal, Pensées, Artigo II, eBookLibris, Brasil

Tradução Nélson Jahr Garcia, revista por Helena Serrão

sábado, abril 10, 2021

Discussão sobre a existência e natureza de Deus

Bem, talvez seja tempo de fazer um sumário da minha posição. Eu argumentei duas coisas: primeiro, que a existência de Deus pode ser filosoficamente provada por um argumento metafísico; em segundo, que é somente pela existência de Deus que a experiência moral do homem fará sentido, e também a experiência religiosa. Pessoalmente, eu penso que o nosso modo de explicar os juízos morais do homem leva inevitavelmente para uma contradição entre o que a sua teoria exige e os seus juízos espontâneos. Além do mais, a sua teoria explica a obrigação moral de longe, e explicar de longe não é explicar.

Em relação ao argumento metafísico, estamos de acordo aparentemente, visto que o que nós chamamos de mundo consiste simplesmente de seres contingentes. Isso é, de seres que não dependem de si para existir. Diz que uma série de eventos não necessitam de explicação: Eu digo que se não existisse o Ser Necessário (…) nada existiria. A infinidade das séries de seres contingentes, mesmo se provada, seria irrelevante. Algo existe de fato; dessa maneira, deve existir alguma coisa que conta para esse fato, um ser que está fora das séries de seres contingentes. Se tivesse admitido isso, nós então poderíamos ter discutido se tal Ser é pessoal, bom e assim por diante. Na atual questão discutida, ou seja, se existe ou não um Ser Necessário, encontro-me e penso de acordo com a maioria dos filósofos clássicos.

Mantém, penso, que os seres existentes são simples, e que não tenho justificação para levantar a questão da explicação para a sua existência. Mas eu gostaria de apontar que essa posição não pode ser substanciada por uma análise lógica; ela expressa uma filosofia que em si mesma se mantém em busca de provas. Eu penso que nós alcançamos um impasse porque as nossas ideias de filosofia são radicalmente diferentes; parece-me que o que eu chamo de uma parte da filosofia, você chama-a de toda, pelo menos na medida de que a filosofia é racional.

Parece-me, se me perdoar o que vou dizer, que ao lado do seu sistema lógico- o que você chama “moderno” em oposição a uma lógica antiquada (um adjetivo tendencioso) - você mantém uma filosofia que não  pode ser substanciada pela análise lógica. Apesar de tudo, o problema da existência de Deus é um problema existencial, ao mesmo tempo em que a análise lógica não lida diretamente com problemas da existência. Então, parece-me, que declarar os termos envolvidos num conjunto de problemas como sem significado porque não são requeridos quando lidamos com outro conjunto de problemas, é estabelecer qual é o começo, a natureza e a extensão da filosofia, e isso é em si mesmo um ato filosófico que permanece em busca de justificação.

Russell: Bem, eu gostaria de dizer algumas palavras como forma de fazer um sumário da minha posição. Primeiro, ao argumento metafísico: eu não admito a conotação de tal termo como “contingente” ou a possibilidade da explicação no sentido do padre Copleston. Eu penso que a palavra “contingente” inevitavelmente sugere a possibilidade de algo que não teria existência por si, o que você poderia dizer o caráter acidental de estar somente lá, e eu não penso que isso seja verdade exceto no sentido puramente causal. Você pode algumas vezes dar uma explicação causal de uma coisa como sendo o efeito de alguma outra coisa, mas isso é meramente referindo uma coisa à outra, e não há, para a minha mente- explicação no sentido do padre Copleston de qualquer coisa que seja, nem existe qualquer significado em denominar essas coisas como “contingentes” porque não há qualquer outra coisa que elas poderiam ser.

Gostaria também de dizer algumas palavras sobre a acusação do padre Copleston de que eu tomo a lógica como toda a filosofia- isso não é de forma alguma o caso. De maneira alguma, reconheço a lógica como toda a filosofia. Penso que a lógica é uma parte essencial da filosofia, e pode ser usada em filosofia, e nisso penso que ele e eu somos iguais. Quando a lógica que ele usa era nova- digamos, no tempo de Aristóteles, houve uma grande gritaria sobre ela; Aristóteles fez um grande estardalhaço sobre aquela lógica. Hoje em dia tornou-se velha e respeitável, e ninguém precisa fazer uma grande gritaria sobre isso. A lógica que eu acredito é comparativamente nova, e por causa disso tenho de imitar Aristóteles e fazer um grande estardalhaço sobre ela; mas não é o caso de eu pensar que ela é toda a filosofia de maneira alguma- não penso isso. Penso que é uma parte importante da filosofia, e quando digo isso, não acho um significado para esta ou aquela palavra, esse é um detalhe baseado no que eu encontrei sobre aquela palavra em particular após pensar sobre ela. Não é a minha posição geral que todas as palavras em metafísica sejam um absurdo, ou qualquer coisa parecida, essa é uma posição que não mantenho.

Em relação ao argumento moral, acho que quando alguém estuda antropologia ou história, percebe que existem pessoas que pensam ser sua obrigação moral praticar atos que eu penso serem abomináveis, e entretanto, atribuir origem divina à matéria dessa obrigação moral, o padre Copleston não me perguntou; mas penso que mesmo a forma da obrigação moral, quando toma a forma de alguém comer o seu pai ou não, não me parece ser uma coisa bonita e nobre; e, dessa forma, não posso atribuir uma origem divina a esse sentido de obrigação moral, o qual, penso, é muito fácil de ser atribuído a Deus de muitas outras maneiras.