sábado, fevereiro 27, 2021

Kuhn e o relativismo das teorias científicas

 


A escola dominante de positivismo no primeira metade do século XX foi o positivismo lógico. Central ao positivismo lógico era o princípio de que a observação pode fornecer um ponto de vista neutro, ou seja, objetivo, como meio de avaliação de uma teoria. Kuhn e Feyerabend 'rejeitaram esta visão' (Suppe 1999:301.)

Os seus argumentos contra a objetividade eram complexos e envolventes julgamentos sobre se a teoria pode ser confirmada pelos factos e se uma teoria pode ser melhor apoiada pela observação do que outras. (…)

O caso de Kuhn (1970) e Feyerabend (1984) contra a objetividade é baseado na sua interpretação do que é conhecido como a tese de Quine-Duhem (Quine 1953; Duhem 1906). Esta tese enfatizou as ligações supostamente 'fracas' entre teoria e observação. Tal fragilidade foi afirmada como resultado das teorias só entrarem em contato com a observação por meio de uma rede de conexões, teorias ou hipóteses auxiliares. (…) Uma teoria envolve proposições enormemente gerais e abstratas e outras que são menos gerais e abstratas. As primeiras proposições, frequentemente denominadas leis ou teorias explicativas, são compostas de conceitos abstratos e gerais, chamados termos teóricos, que exibem relações entre si e, ao fazê-lo, em última análise, especificam quais devem ser as relações entre eventos no mundo. As últimas proposições são chamadas de teorias ou hipóteses exploratórias ou auxiliares, bem como regras de correspondência (Suppe1977: 77). Certos conceitos nessas últimas proposições são chamados de termos observacionais. Os termos teóricos são tão abstratos que não têm referentes observacionais diretos. Os termos observacionais referem-se a referentes diretamente observáveis. Regras de correspondência e hipóteses de conexão especificam quais os termos observacionais que serão qualificados como "sobre" quais termos teóricos. A parte lógica do positivismo "lógico" surge porque teorias ou hipóteses exploratórias, ou auxiliares, são deduzidas de uma teoria explicativa, com base na qual se diz  quais os termos teóricos que representam termos observacionais. (…)

Kuhn e Feyerabend aceitaram a tese de Quine-Duhem e sugeriram que tinha implicações para a objetividade. Para eles, a tese de Quine-Duhem significava que todas as observações eram 'carregadas de teoria' ou 'informadas pela teoria'. A observação é 'carregada de teoria' no sentido de que o que um cientista 'vê' é dependente de uma teoria existente que direciona a observação do cientista. Por exemplo; onde os Durkheimianos  viam  o desvio em todos os lugares. Os marxistas veem exploração. Portanto, uma visão durkheimiana de distúrbios civis pode estar fortemente carregada com observações de desviantes desordeiros, enquanto a visão marxista da mesma realidade pode ser igualmente carregada de observações de revolucionários oprimidos. Isso significa que a teoria polariza a observação, tornando a objetividade impossível. Kuhn e Feyerabend argumentaram então que cientistas ligados a diferentes teorias são obrigados a fazer diferentes observações de apoio às suas teorias. Duas consequências decorrem dessa afirmação. A primeira é que uma teoria pode ser confirmada apenas em relação às observações que se aplicam a ela. A segunda é que se cada teoria tem as suas próprias observações pelas quais é avaliada, então não há base para julgar teorias conflituantes. As teorias são, com efeito, incomensuráveis. Essas consequências relativistas parecem devastar a ciência. No entanto, principalmente nas décadas de 1970 e 1980, os realistas científicos responderam e, como sugere o título de uma de suas obras, procuraram refutar o relativismo (Siegel 1987). Suppe argumenta que seu trabalho foi tão completo que hoje os relativistas são apenas 'relíquias influentes da história da filosofia da ciência '(1989: 300)

(…)

Primeiro, deve-se perceber que mesmo que as afirmações relativistas estejam corretas, as suas implicações para a práxis científica - o que os cientistas realmente fazem – não é determinante. A tese de Quine-Duhem parecia implicar, como Feyerabend notou, que 'teorias não podem ser refutadas de fato' (1984: 113) . No entanto, mesmo que o aceitemos, isso não significa que se pare de avaliar teorias para saber se o que é observado (os factos) está em conformidade com o que foi dito que seria observado (a teoria). Quine e Duhem perceberam que a teoria do conhecimento era mais confiável se apoiada pela observação, e que quanto mais suportada por factos, mais confiável era. Isso significa que conhecimento teórico não apoiado pela observação não é confiável, enquanto o conhecimento apoiado por grandes conjuntos de factos é muito mais confiável; e, claro, prefere-se o último ao primeiro (Ziman 1978). Isso implica que mesmo que a doutrina Quine-Duhem seja considerada correta, o cânone da lógica positivista, a norma de correspondência - ou seja, a teoria deve-se ajustar aos factos (Kaplan 1964: 313) - ainda orienta a pesquisa. Da mesma forma, embora as teorias concorrentes possam ser incomensuráveis, não significa, de acordo com Kuhn ou Feyerabend, que pare de se usar evidências para avaliá-las. Feyerabend, na verdade, sugere procedimentos para formular novas teorias com base em observações de outras mais antigas. Ele diz que os cientistas podem fazer observações relacionadas com uma teoria, dividindo essas observações naquelas que apoiam e naquelas que não apoiam a velha teoria. Então, com base nesses factos, a busca de uma nova teoria começa com a capacidade de explicar teoricamente os factos de confirmação e de falsificação da velha teoria (Feyerabend 1984: 158-9). Três pontos devem ficar claros se seguirmos os procedimentos de Feyerabend: (1) os fatos são absolutamente críticos na avaliação de velhas e novas teorias, (2) as teorias são comensuráveis ​​em termos de números de factos confirmados e falsificados, e (3) pode haver progresso teórico porque novas teorias possuem menos factos falsos e mais comprovados.

 Tradução Helena Serrão

S. P. Reyna, Literary Anthropology and the Case Against Science, Vol. 29, No. 3 (Sep., 1994), pp. 564-571

 

O conceito de facto como motor da revolução científica (cont)

 

Ilustração deTom Lovell


“ Mas as palavras são uma coisa e os conceitos outra. A palavra “facto” diz-nos pouco sobre o estabelecimento e a refutação dos factos. Na astronomia isto é verdade mas, em outros domínios da investigação científica, a palavra consolida uma revolução conceptual.

De acordo com os princípios-padrão da revolução renascentista, havia, fundamentalmente, duas espécies de argumento: os argumentos da razão e os argumentos de autoridade. Havia vários tipos de argumentos reunidos sob o letreiro de “autoridade”: argumentos de “costume, opinião pública, antiguidade, testemunhos dos especialistas na sua própria arte, o juízo dos sábios ou de muitos ou dos melhores”1

Portanto, quando em 1651 pascal esboçou uma introdução ao seu tratado incompleto sobre o vácuo, começou por distinguir duas fontes de conhecimento: razão e autoridade. Como é que sabemos os nomes dos reis de França ao longo da história? Pela autoridade: o testemunho documental está classificado sob a autoridade. Mas de repente e vindo do nada, pascal apresenta-nos a experiência dos sentidos como complemento da razão (embora alguns autores tenham classificado os sentidos no domínio da autoridade). Portanto as decisões sobre a existência do vácuo devem ser tomadas não apelando à autoridade mas com base na experiência dos sentidos e da razão. E onde se encaixa o testemunho pessoal de pascal sobre o desfecho das suas experiências? Não o diz. (…) O testemunho, como forma de autoridade, só parece relevante em condições muito restritas. O facto de todos os seus argumentos estarem nos argumentos finais resultantes do testemunho não lhe parece ter ocorrido.

Este esquema tradicional foi revolucionado por Hobbes. No que lhe dizia respeito, havia só duas fontes de conhecimento: a razão, por um lado, e a experiência, por outro, com a memória e o testemunho, sendo que todos estes elementos estabeleciam as matérias de facto. No âmbito deste esquema, não havia lugar para o hábito, a opinião pública, a antiguidade ou o juízo dos sábios mas o local do testemunho era claro: como a memória, representava uma forma substituta da experiência imediata dos sentidos. Hobbes não diria que herdamos da autoridade o nosso conhecimento dos reis de França. O que teria dito é que o retiramos de imediato do testemunho e, finalmente, da experiência dos sentidos.

A palavra “facto” simbolizou este novo estatuto concedido ao testemunho. (…) Assim, antes da invenção do facto, a o apelo ao testemunho era visto como um apelo à autoridade (e até Digby, que escreveu em 1658, as testemunhas visuais eram pensadas como autoridades): as testemunhas, digamos assim eram vistas como testemunhas abonatórias e não testemunhas visuais. Depois do facto, a testemunha visual torna-se uma espécie de testemunha virtual (….) Com o testemunho separado da autoridade, o que antes era autoridade torna-se, nas palavras de Glanvill, simplesmente “bagagem velha e inútil”. Sprat foi ainda mais contundente: livrarem-se da tirania dos antigos implicava apenas deitar fora aquilo que ele considerava “ o lixo”.

Depois da invenção do facto, o testemunho podia ser encarado como uma espécie de desconfiança sistematizada. No fim, todos os sistemas de conhecimento requerem que a pessoa deposite a sua confiança em alguém, em alguma coisa ou em algum procedimento. Mas salientar o papel incontestável da confiança na nova ciência é correr o risco de não reparar na grande parte do iceberg que se encontra escondida debaixo de água. Boyle afirmava ser de confiança por ter aprendido a desconfiar dos Della Portas deste mundo, esperando ensinar os outros a lerem a sua obra com o mesmo espírito cético com que ele lera o trabalho de Della Porta. A nova ciência, comparada com o que acontecera antes, era baseada na desconfiança e não na confiança.

 

David Wootton, A invenção da ciência, Lx, Temas e debates, 2017, p. 374,375,376

 

1.Pierre du Moulin 1598, citado por Serjeanston "Testimony and proof” (1999)

 

quinta-feira, fevereiro 11, 2021

O que são os valores?


 






Quadro Joaquim Sorolla  dizer título e ano ... apreciação...

O que são os valores? Dizemos que os valores não existem por si mesmos: necessitam de um depositário sobre o qual descansam. Aparecem-nos, portanto como meras qualidades desses depositários: beleza de um quadro, elegância de um vestido, utilidade de uma ferramenta. Se observarmos o vestido, o quadro ou a ferramenta, veremos que a qualidade valorativa é distinta das outras qualidades.

Nos objetos mencionados há algumas qualidades que parecem essenciais para a própria existência dos objetos, por exemplo, a extensão. Mas o valor não confere nem agrega ser, pois a pedra existia plenamente antes de ser talhada, antes de se transformar num bem.

Enquanto as qualidades primárias não se podem eliminar dos objetos, bastam uns golpes de martelo para terminar com a utilidade de um instrumento ou a beleza de uma estátua. Antes de incorporar-se no respetivo portador ou depositário, os valores são meras "possibilidades", isto é, não têm existência real mas virtual.
Ver-se-á melhor a diferença se se comparar a beleza, que é um valor, com a ideia de beleza, que é um objeto ideal. Captamos a beleza primordialmente por via emocional, enquanto a ideia de beleza aprende-se por via intelectual.
Com o fim de distinguir os valores dos objetos ideais, afirma-se que estes são, enquanto os valores não são mas valem.
Uma característica fundamental dos valores é a polaridade. Enquanto as coisas são o que são, os valores apresentam-se desdobrados num valor positivo e o correspondente valor negativo. Assim, a beleza opõe-se à fealdade, o mal ao bem. A polaridade implica a rutura com a indiferença. Não há obra de arte que seja neutra, nem pessoa que se mantenha indiferente a escutar uma sinfonia, ler um poema ou ver um quadro.
Aliás os valores estão ordenados hierarquicamente, isto é, há valores inferiores e superiores. É mais fácil afirmar a existência de uma ordem hierárquica do que indicar qual é essa ordem e quais são os critérios para a estabelecer.
Muitos são os axiólogos que têm enunciado uma tábua de valores, pretendendo que essa seja a "TÁBUA", mas a crítica mostra rapidamente os erros de tais tábuas e dos critérios usados na sua elaboração.
O homem individualmente, bem como as comunidades e os grupos culturais concretos, manejam sempre uma tábua de valores. É certo que tais tábuas não são fixas, mas flutuantes, e nem sempre coerentes; porém é indubitável que o nosso comportamento frente ao próximo, aos seus actos, às suas criações estéticas (...) é julgá-los e preferi-los de acordo com uma tábua de valores. Submeter essas tábuas de valores, que obscuramente influem na nossa conduta e nas nossas preferências, a um exame crítico, é a tarefa a que o homem moderno não pode renunciar.

Frondizi, Qué son los valores? (México, Fondo de Cultura Económica).

segunda-feira, fevereiro 08, 2021

Obstáculos epistemológicos

 


A ciência, tanto pela sua necessidade de prestígio como por princípio, opõe-se absolutamente à opinião. Se, em determinada questão, ela legitimar a opinião, é por motivos diversos daqueles que dão origem à opinião; de modo que a opinião está, por direito, sempre errada. A opinião pensa mal; não pensa: traduz necessidades em conhecimentos. Ao designar os objetos pela utilidade, ela impede-se de os conhecer. Não se pode basear nada na opinião: antes de tudo, é preciso destruí-la. Ela é o primeiro obstáculo a ser superado. Não basta, por exemplo, corrigi-la em determinados pontos, mantendo, como uma espécie de moral provisória, um conhecimento vulgar provisório. O espírito científico proíbe que tenhamos uma opinião sobre questões que não compreendemos, sobre questões que não sabemos formular com clareza. Em primeiro lugar, é preciso saber formular problemas. E, digam o que disserem, na vida científica os problemas não se formulam de modo espontâneo. É justamente esse sentido do problema que caracteriza o verdadeiro espírito científico. Para o espírito científico, todo conhecimento é resposta a uma pergunta. Se não há pergunta, não pode haver conhecimento científico. Nada é evidente. Nada é gratuito. Tudo é construído. O conhecimento adquirido pelo esforço científico pode declinar. A pergunta abstrata e franca desgasta-se: a resposta concreta fica. A partir daí, a atividade espiritual inverte-se e bloqueia. Um obstáculo epistemológico incrusta-se no conhecimento não questionado. Hábitos intelectuais que foram úteis e sadios podem, com o tempo, entravar a pesquisa. Bergson diz justamente: "O nosso espírito tem a tendência irresistível de considerar como mais clara a ideia que costuma utilizar com frequência". A ideia ganha assim uma clareza intrínseca abusiva. Com o uso, as ideias valorizam-se indevidamente. Um valor em si opõe-se à circulação dos valores. É fator de inércia para o espírito. Às vezes, uma ideia dominante polariza todo o espírito. Um epistemólogo irreverente dizia, há vinte anos, que os grandes homens são úteis à ciência na primeira metade de sua vida e nocivos na outra metade. Não surpreende que o instinto formativo seja persistente em alguns pensadores. Mas, o instinto formativo acaba por ceder ao instinto conservador. Chega o momento em que o espírito prefere o que confirma o seu saber àquilo que o contradiz, em que gosta mais de respostas do que de perguntas. O instinto conservador passa então a dominar, e cessa o crescimento espiritual.

 Gaston Bachelard, A formação do espírito científico, RJ, Contraponto, 1996, pg.18,19

quarta-feira, janeiro 13, 2021

 Clique na ligação abaixo para ver o vídeo.

Homenagem ao professor Barata Moura - Faculdade de Letras - Janeiro 2021

 

quarta-feira, dezembro 23, 2020

Pequena história da palavra "facto". (a continuar)

 

 

                                                          "O Júri",  John Morgan, 1861

Em 1778, Gothold lessing escreveu um pequeno ensaio sobre a palavra alemã para “facto” : Tatsache. “ A palavra ainda é jovem”, disse Lessing, e” e lembro-me perfeitamente do tempo antes de alguém a ter usado”. Mas a palavra em si, pelo menos em inglês, francês e italiano, não é nova. A sua origem está no verbo latino facio, ou “eu faço”. Factum, o particípio passado neutro significa “o que foi feito”. Pela Europa fora, onde quer que a influência do direito romano se tenha feito sentir, a lei ocupou-se do factum, que era o ato ou o crime. Por isso, “ o facto de Caim” foi o assassínio de Abel. Na peça Tudo está bem quando acaba bem, de Shakespeare, Helena diz:

Vamos analisar a nossa trama que, apressando,

Tem um significado malvado numa ação legítima

E significado legítimo num ato legítimo,

Onde os dois não pecam mas o facto é pecaminoso.1

O jogo de palavras que aqui existe depende de o “facto” ser, ao mesmo tempo, um sinónio para “ação” e “ato” mas também uma palavra usada especificamente para ações e atos ilegítimos. Em inglês ainda se usa esta linguagem (que será algo arcaica) quando, com a expressão “ an accessory after the fact” (cúmplice depois do facto), se faz referência a alguém que presta ajuda a um criminoso depois do crime ter sido cometido.

No direito inglês, o júri é o juiz do facto (Joe matou Tom? O Júri determina se Joe fez esse ato). O juiz é a autoridade na questão legal (para responder a perguntas como “Em que circunstâncias pode uma pessoa matar outra em legítima defesa?” ou “ Um documento está corretamente elaborado?” Pode-se apresentar recurso da interpretação da lei feita pelo juiz e da orientação dada ao júri mas não da determinação do facto pelo júri. Deve destacar-se aqui que nada houve de natural nesta conceção jurídica do facto. Foi uma construção do século XIII quando o júri substituía o “juízo de Deus” ou julgamento por ordálio. O que significava que o facto possuía um estatuto específico no direito inglês: uma vez estabelecido, nunca poderia ser posto em causa. Daí o aspeto específico da palavra “facto” no seu uso moderno, ao contrário de uma teoria, um facto é sempre verdadeiro e os factos são infalíveis porque os júris determinam os factos e são considerados infalíveis ( ou, pelo menos, incorrigíveis e incontestáveis, o que conduz à mesma coisa).

1)III. vii. 44-7

David Wootton, A invenção da ciência,Lisboa, Temas e Debates, 2017, pág.357 e 358

 

segunda-feira, novembro 30, 2020

Consciência: uma ideia protetora mas vazia


Harvey Blume: Poderá expandir o papel do algoritmo ao seu pensamento? Parece ser uma ideia unificadora.

Daniel Dennett: É uma delas. Deixe-me ver desta forma: David Hume escreveu sobre ideias e impressões complexas. O que realmente queria fazer era explicar o que chamou de associação de ideias - como uma ideia traz a próxima ideia atrelada. Ele queria explicar a ordem das ideias sem ter que postular um diretor para dirigir o espetáculo. Eu estava a tentar explicar isso e um aluno disse: "Hume precisa ter ideias para pensar por si mesmo" - ao que eu disse, "pensar por si mesmo". Tem que tirar o pensador de lá. Se ainda tem o pensador a dirigir, então ainda não começou a trabalhar na mente. Como se quebra essa regressão? Hume tentou. Locke tentou. Skinner tentou. Turing teve sucesso. Foi Turing quem descobriu como se poderia fazer as próprias ideias pensarem. Escreve uma receita para pensar um pouco e dá-a a um matemático. Ele segue a receita, faz o pensamento. Turing diz: Sim, mas pode deixar o matemático de fora. Basta passar a receita para a máquina e eliminar o intermediário. Elimine o intermediário. E o pensamento simplesmente acontece. Turing mostra que se um computador pode somar, subtrair, multiplicar e dividir, e se  pode dizer a diferença entre zero e um, ele pode fazer qualquer coisa. Pode-se pegar num conjunto de habilidades irracionais e transformá-las em estruturas de poder discriminativo indefinido, poder de discernimento indefinido e poder reflexivo indefinido. Pode-se fazer uma mente inteira; assim pode-se resolver o problema de Hume; pode-se ter ideias para pensar por si mesmas nesta estreita base. Essa é a ideia de um algoritmo. E o que Darwin diria? O que significa ter um algoritmo evolutivo? Olhamos para fora e vemos toda essa beleza, todo esse design fabuloso, toda essa Pesquiza e Desenvolvimento. Darwin mostrou como toda essa pesquisa e desenvolvimento podem ser realizados por um processo basicamente estúpido, sem motivo, mecânico, se não necessariamente maligno.

HB: Deduzo do seu trabalho que o trabalho da filosofia é mostrar como as várias disciplinas são semelhantes entre si de uma forma que as pessoas que trabalham nessas disciplinas podem não ser capazes de ver com clareza. É esse o papel da filosofia?

DD: Esse é um dos papéis. A vida é curta e complicada. As pessoas não podem fazer tudo o que gostariam de fazer. E uma das coisas que as pessoas não podem fazer é controlar como o seu reduto particular, a sua especialização um tanto cega, se encaixa no quadro mais amplo. Há sempre problemas na interface: como se encaixa isto com aquilo? Um dos objetivos dos filósofos é fazer isso melhor do que outras pessoas. Não é o único papel, mas levo esse papel muito a sério.

 HB: Poderá citar outro papel?

DD: No início, era tudo filosofia. Aristóteles, quer estivesse a fazer astronomia, fisiologia, psicologia, física, química ou matemática - era tudo a mesma coisa. Foi filosofia. Ao longo dos séculos, houve um processo de refinamento: área após área, as questões que eram inicialmente obscuras e problemáticas tornaram-se mais claras. E assim que isso acontece, essas questões saem da filosofia e tornam-se ciência. Matemática, astronomia, física, química - todas começaram na filosofia e, quando ficaram claras, foram expulsas do ninho. A filosofia é a mãe. Esses são os seus descendentes. Não precisamos voltar muito atrás para ver vestígios disso. O século XVIII é ainda muito cedo para descobrir que a distinção entre filosofia e física não é levada muito a sério. A psicologia é um dos nascimentos mais recentes da filosofia, e só precisamos voltar ao final do século XIX para o ver. A minha sensação é que a trajetória da filosofia é trabalhar em questões muito fundamentais que ainda não foram transformadas em questões científicas. Depois que fica realmente claro quais são as perguntas e o que conta como uma resposta, então é já ciência. A filosofia não tem mais papel a cumprir. É por isso que parece que simplesmente não há progresso. O progresso sai do campo. Se você quiser perguntar se houve progresso na filosofia, eu diria, olhe ao seu redor. Temos departamentos de biologia e física. É aí que está o progresso. Devemos estar muito orgulhosos de que nossa disciplina gerou todos esses outros departamentos científicos.

Entrevista a Daniel Dennett conduzida Por Harvey Blume, in Digital Culture, Dezembro 1998

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