segunda-feira, abril 28, 2008

Há razões objectivas para a Beleza

Caravaggio, Narciso, 1598/99, Roma



O método afectivo de avaliação crítica consiste em avaliar a obra pelos seus efeitos psicológicos, ou pelos efeitos psicológicos prováveis, sobre o próprio crítico ou os outros. Como mais adiante se tornará patente, não considero irrelevantes as razões as razões afectivas para a avaliação dos objectos estéticos (...)Neste momento, apenas defenderei que as razões afectivas, só por si, são inadequadas, porque não são informativas em dois aspectos importantes.
Primeiro, se alguém afirma que ouviu o anadamento lento do Quarteto de Cordas em Mi Bemol Maior (Op.127), de Beethoven, e que lhe deu prazer, ou nos adverte que nos daria prazer, penso que deveríamos considerar esta advertência uma resposta fraca a esta grande música. E, contudo, num sentido muito amplo e vago é verdade que nos dá prazer, tal como os amendoins salgados ou um mergulho em água fresca. Somos, assim, a perguntar que tipo de prazer nos dá e como difere esse prazer de outros, se é que assim pode ser chamado, e como obtém a sua qualidade única precisamente a partir dessas diferenças. E esta linha de investigação levar-nos-ia ao segundo aspecto. Pois uma afirmação afectiva informa-nos sobre o efeito da obra, mas não identifica as características da obra que causam esse efeito. Poderíamos ainda perguntar, por outras palavras, o que há de prazenteiro nesta música que está ausente noutra música. Esta linha de investigação seria paralela à primeira, uma vez que nos conduziria a discriminar este tipo de prazer de outros que têm diferentes causas e objectos.
As mesmas duas questões poderiam ser levantadas acerca da noção geral que parece estar implícita nas outras razões afectivas: a obra é boa se conduz a uma forte reacção emocional de um certo tipo. mas de que modo difere a reacção emocional das fortes reacções emocionais geradas por telegramas anunciando mortes, por sustos de morte em carros descontrolados, pela doença grave de um filho, ou por um pedido de casamento? Há certamente uma diferença importante que a explicação da reacção emocional tem de ter em conta para ser completa. O que há no objecto estético que causa reacção emocional? Talvez seja alguma qualidade específica intensa, na qual a nossa atenção está centrada quando estamos perante a obra. De facto, alguns termos afectivos são muitas vezes enganadores, pois são realmente sinónimos de termos discritivos: querem dizer que o objecto tem certas qualidades específicas num grau de intensidade apreciável. E nesse caso, é claro que a razão já não é afectiva, mas objectiva. (...)
Penso que ao inspeccionarmos bem as razões presentes nos juízos críticos, podemos inseri-las, sem grande dificuldade, em três grupos principais. Em primeiro lugar, há razões que parecem ser suportadas pelo grau de unidade da obra:
... é bem organizada (ou desorganizada).
... é formalmente perfeita (ou imperfeita).
... tem uma estrutura e um estilo internamente coerentes (ou incoerentes).

Em segundo lugar, há razões que parecem apoiar-se no grau de complexidade ou simplicidade da obra:
... é desenvolvida em larga escala.
... é rica em contrastes (ou falta-lhe diversidade e é repititiva).
... é subtil e imaginativa (ou grosseira).

Em terceiro lugar, há razões que parecem apoiar-se na intensidade ou falta de intensidade das qualidades humanas específicas presentes na obra:
... é cheia de vitalidade (ou apagada).
... é poderosa e vivida (ou fraca e deslavada).
... é terna, irónica, trágica, graciosa,delicada, profundamente cómica.

Monroe Beardsley, Estética, 1958

Tradução de Aires de Almeida


quinta-feira, abril 24, 2008

Um paradoxo: o pensamento como pecado


É realmente surpreendente que Nietzsche tenha sabido não só adivinhar em Sócrates um decadente, quer dizer, um homem caído, como também (como se estivesse comprometido a ilustrar com o exemplo de Sócrates a narrativa bíblica) tivesse compreendido que um homem caído é incapaz de salvar-se com as suas próprias forças. Tudo o que o decadente empreende para salvar-se, diz Nietzsche, não faz mais que aumentar a sua perdição. Poderá lutar e vencer-se a si mesmo tudo o que puder; os seus intentos de salvação não são mais que a expressão da sua queda. Tudo o que faz, fá-lo como homem caído, quer dizer como um homem que perdeu a liberdade de escolha e foi condenado por força hostil a ver a sua salvação precisamente no mesmo lugar onde está a causa da sua perda.

Quando Kierkegaard disse que o maior génio é também o maior pecador, não nomeia Sócrates, mas evidentemente teve que pensar nele. Sócrates personificava para ele, essa tentação de que a Bíblia fala. E, com efeito, pode haver máxima mais tentadora do que a do oráculo de Delfos - "Conhece-te a ti mesmo" - ou que o prudente conselho de Sócrates - discorrer o dia inteiro sobre a virtude? Mas é justamente nisto que consiste a tentação da serpente bíblica. E tentou tão bem o primeiro homem, que hoje todavia vemos ali mesmo a verdade onde se oculta um fatal engano. Todos os homens, os místicos inclusivé, aspiram ao conhecimento. No que toca a Kierkegaard, põe simplesmente de parte a serpente, e isto por razões, que como todo o mundo, lhe parecem surgir das profundezas do espírito que despertou da "modorra da ignorância". Há que buscar aqui, provavelmente, a origem dessa convicção Socrática segundo a qual o homem que "sabe" não pode fazer o mal e, por consequência, também a origem da nossa segurança de que o pecado não pode proceder da árvore da Ciência. Se queremos prosseguir utilizando imagens bíblicas teremos que dizer, ao contrário, que o pecado procede da árvore da vida e que, em suma, todo o mal que existe sobre a terra procede da mesma árvore.
Leon Chestov, Kierkegaard y la filosofia existencial, Editorial Sudamericana, Buenos Aires, 1951
Título original em francês: Kierkegaard et la Philosophie Existentielle
Tradução para o espanhol de José Ferrater Mora
Tradução do espanhol: Helena Serrão
Gravura: Masaccio, A expulsão de Adão e Eva do Paraíso,1401, 1428


quinta-feira, abril 17, 2008

Da disciplina dos cidadãos


De todos os meios referidos para assegurar a conservação dos regimes políticos, o que se afigura mais importante é o que se encontra hoje menosprezado: a educação cívica.


Na verdade de nada aproveitará uma legislação, por muito útil que seja e aprovada unanimemente por todos os cidadãos, se estes não adquirirem os hábitos nem forem educados segundo o espírito do regime estabelecido.


Com efeito, se a indisciplina é apanágio de um indivíduo, o mesmo se passa na cidade. Educar em conformidade com o regime consiste em atingir não o que satisfaz as veleidades dos oligarcas ou dos partidários da democracia, mas atingir, sim, o que capacita aqueles a governar de modo oligárquico, e estes democraticamente.


No entanto o que vigora hoje nas oligarquias é o esbanjamento em que vivem os filhos dos magistrados; aos filhos dos desfavorecidos só lhes resta entregarem-se a trabalhos árduos e fatigantes (mesmo que sejam mais ambiciosos e capazes de se lançar em reformas).


Mesmo nas democracias que se presumem as mais representativas das massas populares, acaba por acontecer o contrário do que é mais adequado ao interesse comum. A razão é a má compreensão da liberdade. (...) confundem liberdade (eleutheria) com libertinagem.


No regime democrático a justiça parece consistir na igualdade: uma igualdade fundada na opinião da maioria - pois a opinião é considerada suprema - e a liberdade e igualdade de cada um fazer aquilo que muito bem lhe apraz.


Aristóteles, Política, 1310a 10-35
Quadro de Paul Klee

segunda-feira, abril 14, 2008

Karl Popper e o princípio da indução

De acordo com uma tese amplamente aceite - e a que aqui nos oporemos -, as ciênclas empíricas podem caracterizar-se pelo facto de empregarem os chamados métodos indutivos. Segundo esta perspectiva, a lógica da investigação científica seria idêntica à lógica indutiva, ou seja, à análise lógica de tais métodos indutivos.É habitual chamar “indutiva” a uma inferência quando passa de aflrmações singulares (por vezes chamadas “particulares”), tais como descrições dos resultados de observações ou de experiências, para afirmações universais, tais como hipóteses e teorias.Ora bem, de um ponto de vista lógico, está longe de ser óbvio que a inferência de afirmações universais a partir de afirmações particulares, por mais elevado que seja o seu número, esteja justificada; pois qualquer conclusão a que cheguemos por esta via, corre sempre o risco de um dia se tornar faisa: seja qual for o número de exemplares de cisnes brancos que tenhamos observado, isso não justifica a conclusão de que todos os cisnes sejam brancos.A questão de saber se as inferências indutivas estão justificadas, ou sob que condições o estão, é conhecida como o problema da indução.
0 probiema da inducão pode também ser formulado como a questão de saber como estabelecer a verdade de afirmações universais baseadas na experiência, como as hipóteses e os sistemas teóricos das ciências empíricas. Pois multas pessoas acreditam que a verdade destas afirmações universais é “conhecida por experiência”; contudo, é claro que a informação obtida de uma experiência – uma observação ou o resultado da experimentação - pode, em primeiro lugar, ser apenas uma afirmação singular e nunca uma universal. Por isso, aqueles que dizem que sabemos pela experiência a verdade de uma afirmação universal, habitualmente querem dizer que a verdade desta afrmação universal pode de algum modo ser reduzida à verdade de outras afirmações, as quais são singulares, e que sabemos que estas afirmações singulares são verdadeiras pela experiência; o que equivale a dizer que a afirmação universal se baseia na inferência indutiva. Assim, perguntar se há leis naturais que sabemos serem verdadeiras parece ser apenas outra maneira de perguntar se as inferênclas indutivas estão logicamente justificadas.
Mas se queremos encontrar uma maneira de justificar as inferências indutivas, temos antes de mais de tentar estabelecer um princípio de indução. Um princípio de indução seria uma afirmação com a ajuda da qual poderíamos apresentar as ditas inferênclas numa forma logicamente aceitável. Aos olhos dos partidários da lógica indutiva um princípio de indução da maior importância para o método científico: “[…] este princípio, diz Reichenbach, determina a verdade das teorias científicas. Eliminação da ciência significaria nada menos que privá-la do poder de decidir sobre a verdade ou falsidade das suas teorias. É evidente que sem ele a ciência perderia o direito de distinguir as suas teorias das criações fantasiosas e arbitrárias da imaginação dos Poetas” (Erkenntnis 1, 1930, p. 186).
Alguns dos que acreditam na lógica indutiva precipitam-se, juntamente com Reichenbach, a assinalar que “o princípio da indução é aceite sem reservas pela totalidade da ciência e que nenhuma pessoa pode, tão pouco, duvidar seriamente dele na sua vida quotidiana” (Ibidem, p, 67). Supondo, não obstante, que fosse assim - pois, afinal de contas, a “totalidade da ciência”, pode laborar em erro - eu continuaria a defender que o princípio da indução é supérfluo e que leva forçosamente a inconsistências lógicas.
Que facilmente podem surgir inconsistências em conexão com o princípio da induoção deveria ser claro a partir de Hume; e também que so com muita dificuldade podem ser evitadas, se é o que o podem. Pois o principio da indução tem de ser, por sua vez, uma afirmação universal. Assim, se tentarmos encarar a sua verdade como algo que é conhecido com base na experiencia, então os mesmos problemas que motivaram a sua introdução surgirão outra vez. Para o justificar, temos de empregar inferências indutivas; e para justificar estas últimas deveremos ter de pressupor um princípo indutivo de uma ordem superior; e assim por diante. Assim, a tentativa de basear o princípio da indução na experiência não dá em nada, pois tem de conduzir a uma regressão infinita. (…)
Karl Popper, Lógica da Investigação Científica (1959).

Courbet


A questão da arte moral ou imoral – se a arte deve ser “art for art’s sake”, independentemente da moralidade -, apesar de muito simples solução, não tem deixado de ocupar desagradavelmente muito pensador, essencialmente dos que desejam provar que a arte deve ser moral.
Em primeiro lugar demos inteira razão – é evidente que a têm – aos estetas; a arte tem, em si, por fim só a criação de beleza, à parte as considerações de ser moral ou não. Se isto é assim, quem manda pois à arte ser moral? A resposta é simples: a moral. Manda-o a moral porque a moral deve reger todos os actos da nossa vida. Têm errado aqueles que têm querido achar razão, dentro da própria natureza da arte, para a arte ser moral. Não existe essa razão onde a procuraram. A arte, que é arte, tem por fim apenas a beleza. A razão que a manda ser moral existe na moral, que é exterior à estética; existe na natureza humana.
A arte tem duas funções: a feição puramente artística e a feição social. A feição artística é criar a beleza – nada mais.

Fernando Pessoa, Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias, p. 55

quinta-feira, abril 10, 2008

Karl Popper: demarcação entre ciência e não-ciência

Foto de Helena Serrão

De acordo com Karl Popper, qualquer teoria científica genuína será falsificável. Quer dizer, haverá uma possível observação que poderia falsificá-la. Na opinião de Popper, uma posição verdadeiramente científica faz uma afirmação positiva acerca de como o mundo funcionará. Corre o risco de ser falsa – o mundo pode não funcionar como a teoria diz. As posições não falsificáveis não permitem fazer este tipo de afirmações, pois são compatíveis com qualquer modo de funcionamento do mundo. Por isso, carecem de qualquer conteúdo empírico. Por exemplo, dizer que “As esmeraldas são verdes ou não são verdes.” é uma afirmação não falsificável – seja o que for que observemos será compatível com a sua verdade. Portanto, não é genuinamente científica. Popper sugere que esta é a maneira de distinguir entre as teorias que são genuinamente científicas e aquelas que são apenas pseudo-científicas. As teorias genuinamente científicas são falsificáveis. Teorias que dizem ser científicas mas não falsificáveis são falsa ciência. De acordo com Popper, nem a teoria da história de Marx, nem a teoria do inconsciente de Freud, podem ser sujeitas ao teste da falsificabilidade. Popper argumenta que qualquer que seja a contra-evidência que possamos recolher contra as teorias de Marx ou de Freud, há sempre uma maneira de a teoria se acomodar a essa contra-evidência. Segundo Popper, estas teorias não são más teorias científicas. Em vez disso, elas não são sequer teorias científicas.
Stephen Law, Philosophy (2007).
Tradução de Carlos Marques

terça-feira, abril 08, 2008

O fundamento objectivo da ética é dar-nos uma perspectiva mais ampla das relações humanas

As verdades éticas não estão escritas na estrutura do universo: até aqui o subjectivismo tem razão. Se não existissem seres com desejos ou preferências de qualquer tipo, nada poderia ter valor e a ética não teria qualquer conteúdo. Por outro lado, uma vez que existem seres com desejos, há valores que não se reduzem aos valores subjectivos de cada ser individual. A possibilidade de se ser conduzido, pela razão, ao ponto de vista do universo fornece a "objectividade" suficiente. Quando a minha faculdade da razão me mostra que o sofrimento de outro ser é muito semelhante ao meu próprio sofrimento e (nas circunstâncias adequadas) é tão importante para outros seres como o meu próprio sofrimento é importante para mim, então a minha razão está a mostrar-me uma coisa que é inegavelmente verdadeira.Posso sempre escolher ignorá-la; porém, já não posso negar que, ao fazê-lo, a minha perspectiva é uma perspectiva mais estreita e mais limitada do que aquilo que poderia ser. Isto pode não ser suficiente para manter uma posição ética objectivamente verdadeira. (Uma pessoa pode sempre perguntar: qual é a vantagem de ter uma perspectiva mais ampla e mais abrangente? ) No entanto, não se pode encontrar um fundamento mais objectivo para a ética.


Peter Singer, Escritos sobre uma vida ética, Dom quixote,Lx,2008




Tradução de Pedro Galvão, Maria Teresa Castanheira e Diogo Fernandes

quinta-feira, abril 03, 2008

Conferências


quarta-feira, abril 02, 2008

Televisão: Um perigo para a democracia

Imagem criada por Chris Weston para ilustrar o romance de George Orwell, "1984" onde se colocou pela primeira vez em ficção a ideia de uma câmara "Big brother" que vigiava o movimento dos cidadãos.


Por ocasião de uma conferência que dei há alguns anos na Alemanha tive o ensejo de conhecer o responsável de uma cadeia (de TV) que se deslocara para me ouvir juntamente com alguns colaboradores. (...) Durante a nossa discussão fez afirmações inauditas, que se lhe afiguravam naturalmente indiscutíveis. «Devemos oferecer às pessoas o que elas esperam», afirmava, por exemplo, como se fosse possível saber o que as pessoas pretendem recorrendo simplesmente aos índices de audiência. Tudo o que é possível recolher, eventualmente, são indicações sobre as preferências dos telespectadores face aos programas que lhes são oferecidos. Esses números não nos dizem o que devemos ou podemos propor, e esse director de cadeia também não podia saber que escolhas fariam os telespectadores perante outras propostas. De facto, ele estava convencido de que a escolha só seria possível no quadro do que era oferecido e não perspectivava qualquer alternativa. Tivemos uma discussão realmente incrível. A sua posição afigurava-se-lhe conforme aos «princípios da democracia» e pensava dever seguir a única direcção compreensível para ele, a que considerava «a mais popular». Ora, em democracia nada justifica a tese deste director de cadeia (de TV), para quem o facto de apresentar programas cada vez mais medíocres corresponde aos princípios da democracia «porque é o que as pessoas esperam». Nessas circunstâncias, só nos resta ir para o inferno!"A democracia, como expliquei algures, não é mais do que um sistema de protecção contra a ditadura, e nada no seio da democracia proíbe as pessoas mais instruídas de comunicarem o seu saber às que o são menos. Pelo contrário, a democracia sempre procurou elevar o nível de educação; é essa a sua autêntica aspiração. As ideias deste director de cadeia (de TV) não correspondem em nada ao espírito democrático, que sempre foi o de oferecer a todos as melhores oportunidades. Inversamente, os seus princípios conduzem a propor aos telespectadores emissões cada vez piores, que o público aceita desde que se lhes acrescente violência, sexo e sensacionalismo".




Karl Popper e John Condry, Televisão: Um perigo para a democracia, 1999, Gradiva, Lx

terça-feira, abril 01, 2008

O existencialismo



A maior parte das pessoas que utilizam este termo ficariam bem embaraçadas se o quisessem justificar [...]
O que torna o caso complicado é que há duas espécies de existencialistas: de um lado há os que são cristãos, e entre eles incluirei Jaspers e Gabriel Marcel, de confissão católica; e de outro lado, os existencialistas ateus, entre os quais há que incluir Heidegger, os existencialistas franceses e a mim próprio. O que têm de comum é simplesmente o facto de admitirem que a existência precede a essência, ou, se se quiser, que temos de partir da subjectividade.
Que é que em rigor se deve entender por isso?
Consideremos um objecto fabricado, como por exemplo um livro ou um corta-papel: tal objecto foi fabricado por um artífice que se inspirou de um conceito; ele reportou-se ao conceito do corta-papel, e igualmente a uma técnica prévia de produção que faz parte do conceito, e que é no fundo uma receita.
Assim, o corta-papel é ao mesmo tempo um objecto que se produz de uma certa maneira e que, por outro lado, tem uma utilidade definida, e não é possível imaginar um homem que produzisse um corta-papel sem saber para que há-de servir tal objecto. Diremos pois que, para o corta-papel, a essência - quer dizer, o conjunto de receitas e de características que permitem produzi-lo e defini-lo - precede a existência: e assim a presença, frente a mim, de tal corta-papel ou de tal livro está bem determinada. Temos, pois, uma visão técnica do mundo, na qual se pode dizer que a produção precede a existência.
Quando concebemos um Deus criador, esse Deus identificamo-lo quase sempre como um artífice superior; e qualquer que seja a doutrina que consideremos, trate-se duma doutrina como a de Descartes ou a de Leibniz, admitimos sempre que a vontade segue mais ou menos a inteligência ou pelo menos a acompanha, e que Deus, quando cria, sabe perfeitamente o que cria. Assim o conceito do homem, no espírito de Deus, é assimilável ao conceito de um corta-papel no espírito do industrial; e Deus produz o homem segundo técnicas e uma concepção, exactamente como o artífice fabrica um corta-papel segundo uma definição e uma técnica. Assim o homem individual realiza um certo conceito que está na inteligência divina.
No século XVIII, para o ateísmo dos filósofos, suprime-se a noção de Deus mas não a ideia de que a essência precede a existência. Tal ideia encontramo-la nós um pouco em todo o lado: encontramo-la em Diderot, em Voltaire e até mesmo num Kant. O homem possui uma natureza humana; esta natureza, que é o conceito humano, encontra-se em todos os homens, o que significa que cada homem é um exemplo particular de um conceito universal - o homem; para Kant resulta de tal universalidade que o homem da selva, o homem primitivo, como o burguês, estão adstritos à mesma definição e possuem as mesmas qualidades de base. Assim pois, ainda aí, a essência do homem precede essa existência histórica que encontramos na natureza.
O existencialismo ateu, que eu represento, é mais coerente. Declara ele que, se Deus não existe, há pelo menos um ser no qual a existência precede a essência, um ser que existe antes de poder ser definido por qualquer conceito, e que este ser é o homem ou, como diz Heidegger, a realidade humana. Que significará aqui o dizer-se que a existência precede a essência? Significa que o homem primeiramente existe, se descobre, surge no mundo; e que só depois se define.
O homem, tal como o concebe o existencialista, se não é definível, é porque primeiramente não é nada. Só depois será alguma coisa e tal como a si próprio se fizer. Assim, não há natureza humana, visto que não há Deus para a conceber.
O homem é, não apenas como ele se concebe, mas como ele quer que seja, como ele se concebe depois da existência, como ele se deseja após este impulso para a existência; o homem não é mais que o que ele faz. Tal é o primeiro princípio do existencialismo. É também a isso que se chama a subjectividade, e o que nos censuram sob este mesmo nome. Mas que queremos dizer nós com isso, senão que o homem tem uma dignidade maior do que uma pedra ou uma mesa? Porque o que nós queremos dizer é que o homem primeiro existe, ou seja, que o homem antes de mais nada é o que se lança para um futuro, e o que é consciente de se projectar no futuro.
O homem é antes de mais nada um projecto que se vive subjectivamente, em vez de ser um creme, qualquer coisa podre ou uma couve-flor; nada existe anteriormente a este projecto; nada há no céu inteligível, e o homem será antes de mais o que tiver projectado ser. Não o que ele quiser ser. Porque o que entendemos vulgarmente por querer, é uma decisão consciente, e que, para a maior parte de nós, é posterior àquilo que ele próprio se fez. Posso querer aderir a um partido, escrever um livro, casar-me; tudo isso não é mais do que a manifestação duma escolha mais original, mais espontânea do que o que se chama vontade.
Mas se verdadeiramente a existência precede a essência, o homem é responsável por aquilo que é. Assim, o primeiro esforço do existencialismo é o de pôr todo o homem no domínio do que ele é e de lhe atribuir a total responsabilidade da sua existência. E, quando dizemos que o homem é responsável por si próprio, não queremos dizer que o homem é responsável pela sua restrita individualidade, mas que é responsável por todos os homens. [...]
Quando dizemos que o homem se escolhe a si, queremos dizer que cada um de nós se escolhe a si próprio; mas com isso queremos também dizer que, ao escolher-se a si próprio, ele escolhe todos os homens. Com efeito, não há dos nossos actos um sequer que ao criar o homem que desejamos ser, não crie ao mesmo tempo uma imagem do homem como julgamos que deve ser. Escolher ser isto ou aquilo, é afirmar ao mesmo tempo o valor do que escolhemos, porque nunca podemos escolher o mal o que escolhemos é sempre o bem, e nada pode ser bom para nós sem que o seja para todos. Se a existência, por outro lado, precede a essência e se quisermos existir, ao mesmo tempo que construímos a nossa imagem, esta imagem é válida para todos e para toda a nossa época. Assim, a nossa responsabilidade é muito maior do que poderíamos supor, porque ela envolve toda a humanidade. [...]
Antes de mais, que é que se entende por angústia? O existencialista não tem pejo em declarar que o homem é angústia. Significa isso: o homem ligado por um compromisso e que se dá conta de que não é apenas aquele que escolhe ser, mas de que é também um legislador pronto a escolher, ao mesmo tempo que a si próprio, a humanidade inteira, não poderia escapar ao sentimento da sua total e profunda responsabilidade. Decerto, há muita gente que não vive em ansiedade; mas é nossa convicção que esses tais disfarçam a sua angústia, que a evitam [...]
E quando se fala de desamparo, expressão querida a Heidegger, queremos dizer somente que Deus não existe e que é preciso tirar disso as mais extremas consequências. O existencialista opõe-se muito a um certo tipo de moral laica que gostaria de suprimir Deus com o menor dispêndio possível.
Quando à volta de 1880 alguns professores franceses tentaram construir uma moral laica, disseram mais ou menos isto: Deus é uma hipótese inútil e dispendiosa, vamos pois suprimi-la, mas torna-se necessário, para que haja uma moral, uma sociedade, um mundo policiado, que certos valores sejam tomados a sério e considerados como existindo a priori: é preciso que seja obrigado, a priori, ser honesto, não mentir, não bater na mulher, ter filhos, etc., etc... Vamos pois aplicar-nos a uma pequena tarefa que permita mostrar que estes valores existem, apesar de tudo, inscritos num céu inteligível, embora, no fim de contas, Deus não exista.
Por outras palavras, e é essa, creio eu, a tendência de tudo o que se chama em França o radicalismo - nada será alterado, ainda que Deus não exista; reencontraremos as mesmas normas de honestidade, de progresso, de humanismo e, quanto a Deus, teremos feito dele uma hipótese caduca que morrerá em sossego e por si própria. O existencialista, pelo contrário, pensa que é muito incomodativo que Deus não exista, porque desaparece com ele toda a possibilidade de achar valores num céu inteligível; não pode existir já o bem a priori, visto não haver já uma consciência infinita e perfeita para pensá-lo; não está escrito em parte alguma que o bem existe, que é preciso ser honesto, que não devemos mentir, já que precisamente estamos agora num plano em que há somente homens.
Dostoiewsky escreveu: «Se Deus não existisse, tudo seria permitido». Aí se situa o ponto de partida do existencialismo. Com efeito, tudo é permitido se Deus não existe, fica o homem, por conseguinte, abandonado, já que não encontra em si, nem fora de si, uma possibilidade a que se apegue. Antes de mais nada, não há desculpas para ele.
Se, com efeito, a existência precede a essência, não será nunca possível referir uma explicação a uma natureza humana dada e imutável; por outras palavras, não há determinismo, o homem é livre, o homem é liberdade. Se, por outro lado, Deus não existe, não encontramos diante de nós valores ou imposições que nos legitimem o comportamento. Assim, não temos nem atrás de nós, nem diante de nós, no domínio luminoso dos valores, justificações ou desculpas. Estamos sós e sem desculpas. É o que traduzirei dizendo que o homem está condenado a ser livre. Condenado, porque não se criou a si próprio; e no entanto livre, porque uma vez lançado ao mundo, é responsável por tudo quanto fizer. [...]
Jean- Paul Sartre, O existencialismo é um humanismo,

O sentido da vida


Albert Camus - 1913 /1960

Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: o suicídio. Julgar se a vida merece ou não ser vivida é responder uma questão fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, vem depois. Trata-se de jogos; é preciso primeiro responder. E se é verdade, como quer Nietzsche, que um filósofo, para ser estimado, deve pregar com o seu exemplo, percebe-se a importância dessa reposta, porque ela vai anteceder o gesto definitivo. São evidências sensíveis ao coração, mas é preciso ir mais fundo até torná-las claras para o espírito. Se eu me pergunto por que julgo que tal questão é mais premente que tal outra, respondo que é pelas ações a que ela se compromete. Nunca vi ninguém morrer por causa do argumento ontológico. Galileu, que sustentava uma verdade científica importante, abjurou dela com a maior tranqüilidade assim que viu sua vida em perigo. Em certo sentido, fez bem. Essa verdade não valia o risco da fogueira. Qual deles, a Terra ou o Sol gira em redor do outro, é-nos profundamente indiferente.
Albert Camus, O Mito de Sísifo, Livros do Brasil,Lisboa, s.d