quinta-feira, novembro 26, 2009

Poderemos crer numa religião quando somos filósofos?

Esta oposição automática entre religião e filosofia repousa provavelmente tanto em ideias preconcebidas acerca da religião como da Filosofia. Crer não é necessariamente sinónimo de fé misteriosa absoluta e indubitável. Filosofar não reenvia necessariamente a uma análise exclusivamente racional do real. Podemos crer em Deus " de modo filosófico", por exemplo sabendo incorporar na sua crença uma parte da dúvida que, de Sócrates a Descartes, identifica a atitude filosófica. Encontraremos aí mesmo, como explica Gianni Vatimmo em Depois do Cristianismo, uma barreira contra o fanatismo, intolerância daquele que não suporta a dúvida dos outros porque antes de mais não suporta a sua própria dúvida. Podemos inversamente , "filosofar de modo religioso", por exemplo crendo em certas ideias que não é possível demonstrar racionalmente. Assim encontraremos na Filosofia de Kant três ideias (eu, mundo e Deus), paradoxalmente chamadas "Ideias da Razão"nas quais podemos crer, às quais podemos conceder o nosso crédito, apesar do seu carácter hipotético, e que têm um uso regulador positivo no nosso esforço para conhecer, agir e viver.



Philippe Bardon, Peut on croire à une religion quand on est philosophe? in Philosophie Magazine, Octobre, 2009



Tradução Helena Serrão
Imagem: Cristo de Velazquez

sábado, novembro 21, 2009

A ideologia igualitária

Alessandra Sanguinetti, Nova Iorque, 1968. Crossing

Em última instância, desde que criemos qualquer coisa, criamos desigualdade: se escrevo um livro terei um sucesso e um renome que o meu vizinho não tem porque ainda não escreveu um livro. Impossível terminar com as desigualdades (...) a nossa perturbação resulta de um exagero contemporâneo sobre o valor da igualdade. Ora Aristóteles - que em matéria moral nunca foi ultrapassado - demonstra na Ética a Nicómaco que se uma exigência (exigence) é forçada ao seu extremo, acaba por ter um efeito perverso. Isto é verdadeiro para qualquer valor: uma liberdade desmesurada acaba na tirania dos mais fortes. E, do mesmo modo, uma igualdade sem proporção provoca uma série de desigualdades.

Podemos observá-lo na Escola: em média há hoje menos crianças de operários nas grandes escolas do que havia nos anos cinquenta. Apesar da constante exigência de igualdade, houve uma regressão! Simplesmente porque hoje é considerado contra-produtivo, e enfim hipócrita, tratar de um modo igual uma criança da burguesia - que tem acesso aos bens culturais, a aulas particulares etc - e uma criança dos subúrbios. Ao tratar cada caso de forma diferente , reforçamos as desigualdades iniciais.

De outro modo, penso que a ideologia igualitária é tanto mais perniciosa quanto põe em perigo a nossa necessidade de democracia. Porque acredito que há, não apenas um desejo mas uma necessidade de igualdade. É uma necessidade ética: um pobre é igual a um rico em dignidade, um deficiente mental tem-na tanto como um não-deficiente . É preciso que voltemos a Aristóteles: encontrar "o justo meio" (ou a justa medida) entre a igualdade extrema e a extrema desigualdade. Porque esta igualdade preguiçosa que reina hoje sem excepção, não encoraja ninguém a ultrapassar-se a si próprio. A nossa civilização ao perder o sentido do alto e do baixo, está ameaçada por aquilo que, num livro precedente, chamei de "Barbaria interior".


Jean-François Mattéi, Como podemos ser não-igualitaristas? in Philosophie, Outubro 2009, pp 49, 50

Tradução do francês de Helena Serrão

sexta-feira, novembro 13, 2009

Explicar uma acção é determinar a razão básica


Saber a razão primária por que alguém agiu como agiu é saber a intenção com que a acção foi feita. Se viro à esquerda numa bifurcação porque quero chegar a Katmandu, a minha intenção, ao virar à esquerda, é chegar a Katmandu. Mas saber a intenção não consiste, necessariamente, em conhecer a razão primária com todo o pormenor. Se James vai à igreja com a intenção de agradar à sua mãe, deverá ter alguma pró-atitude face a agradar à sua mãe, mas é necessária mais informação para que se possa dizer se a sua razão é a de gostar de agradar à sua mãe, se é pensar que isso é o correcto, se é um dever ou se é uma obrigação.

[...]

Quando perguntamos a alguém por que agiu como agiu, queremos obter uma interpretação. Talvez o seu comportamento pareça estranho, alienígena, ultrajante, injustificado, mal interpretado, desconexo. Ou talvez nem consigamos mesmo reconhecer uma acção nesse comportamento. Quando compreendermos a sua razão teremos uma interpretação, uma nova descrição do que fez e que encaixará num quadro habitual. Esse quadro inclui algumas das crenças e atitudes do agente. Talvez também inclua metas, fins, princípios, traços gerais de carácter, virtudes ou vícios. Para além disto, a redescrição de uma acção proporcionada por uma razão pode situá-la num contexto de avaliação — social, económico, linguístico — mais alargado. Compreender, mediante a compreensão da razão, que o agente concebeu a sua acção como uma mentira, o pagamento de uma dívida, um insulto, o cumprimento de uma obrigação avuncular ou um jogo de xadrez, significa apreender o desígnio da acção enquanto aplicação de regras, práticas, convenções e expectativas.

Comentários como estes, inspirados no segundo Wittgenstein, têm sido elaborados com subtileza e profundidade por um considerável número de filósofos. E não há maneira de negar que são verdadeiros: quando explicamos uma acção através da respectiva razão, redescrevêmo-la. Redescrever a acção dá à acção um lugar num certo padrão e, por este caminho, explica-se a acção.

Donald Davidson, "Actions, Reasons, and Causes" in Essays on Actions and Events (Clarendon Press, 1980), pp. 7-10.
Tradução de António Paulo Costa

sexta-feira, novembro 06, 2009

O Casamento homossexual

Burt Glinn
A discussão deste tema começou aqui, há cerca de um ano atrás. O tema voltou à ordem do dia. Contrariamente à perspectiva colocada, apresentamos um outro texto que se apresenta defendendo o casamento homossexual. Basicamente os argumentos destes textos partem de duas crenças básicas: a primeira, apresentada por Scruton, é contra, defende o casamento como aliança fundamentada na necessidade de segurança e preservação da espécie mas também em algo a/histórico, como uma comunhão primordial. A segunda perspectiva considera o casamento como um direito civil dos indivíduos considerados isoladamente, o casamento deve ser acessível a todos porque todos e cada um por si, são iguais perante a lei. A soma de razões apresentadas e o brilhantismo dos argumentos não altera a nossa crença básica a favor ou contra, essa adesão parece fazer-se antes de qualquer razão e fundamenta-se numa adesão emocional para a qual encontraremos depois uma maravilhosa explicação. De modo que discutir este problema parece ser pura perda de tempo. Penso, no entanto que esta discussão decorre de outra mais fundante e séria: 1º Se a legislação deve privilegiar as liberdades indivíduais em relação ao equilíbrio social. 2º Se as leis humanas podem e devem regular todos os aspectos da vida social sem qualquer submissão a princípios religiosos.A construção de um Estado laico choca ainda muita gente porque parece que em alguns aspectos usurpa um espaço que não é o seu , que pertence a outra dimensão, uma dimensão onde os homens não podem dispôr segundo os seus interesses. Este é, parece -me, o problema que entrava a aceitação de novas leis sobretudo quando não se coadunam com a tradição cristã/católica.
" A decisão de casar faz parte dos direitos fundamentais dos indivíduos e, por essa razão, implica igualmente uma dimensão igualitária: nenhum grupo poderá ser excluído senão por uma razão demolidora. É como com o voto; não existe um direito constitucional de votar, mas é inconstitucional (Nos Estados Unidos) impedir um grupo qualquer de exercer esse direito; nessas condições, a questão coloca-se: quem tem direito ao casamento e que razões serão suficientemente poderosas para ignorar esse direito?

O futuro do casamento parece continuar a ser, num certo sentido, semelhante ao seu passado. As pessoas vão continuar a unir-se, a formar famílias, a ter filhos e, por vezes, a separarem-se. A constituição americana exige, no entanto, que seja o que for que o Estado venha a decidir o faça na base da igualdade. O governo não pode excluir um grupo de cidadãos das vantagens da sociedade civil ou da dignidade alicerçada do casamento sem uma razão de interesse público convincente. Incluir completamente os casais do mesmo sexo é, num certo sentido, uma enorme oportunidade, tal como o casamento interracial o foi, no seu tempo, e como foi a obtenção do direito de voto pelas mulheres e os Afro-Americanos. (...) Uma simples política de humanidade exige que paremos de considerar os casamentos entre pessoas do mesmo sexo como uma desonra ou uma profanação em relação ao casamento tradicional, mas, ao contrário, que compreendamos os objectivos daqueles que procuram o casamento e a semelhança entre aquilo que eles procuram e o que procuram os heterossexuais. Reflectindo nesta direccção, o problema parece análogo áquele que era colocado no seu tempo pela mestiçagem: uma exclusão intolerável numa sociedade que deseja que todos beneficiem de respeito igual e igual justiça. "


Martha Nussbaum, Disent, in Philosophie Magazine, Outubro, 2009
Traduzido do Francês por Helena Serrão

quinta-feira, novembro 05, 2009

Movimento e acção

Raymond Depardon
Que faz ela? Quem pode responder?

Se pensarmos nas acções humanas, imediatamente descobrimos algumas diferenças notáveis entre elas e outros acontecimentos do mundo natural. Primeiramente, é tentador pensar que tipo de acções ou comportamentos se podem identificar com tipos de movimentos corporais. Mas isso é obviamente errado. Por exemplo,um e o mesmo conjunto de movimentos corporais poderá constituir uma dança, ou uma sinalização, um exercício ou uma testagem dos próprios músculos, ou então nada do que foi dito. Além disso, assim como um e o mesmo conjunto de movimentos físicos podem constituir tipos de acções completamente diversos, assim também um tipo de acção pode ser realizado por um número de tipos grandemente diferente de movimentos físicos.

Jonh Searle, Mente cérebro e ciência, Lx, Edições 70

terça-feira, novembro 03, 2009

Uma questão de perspectiva

Nikos Economopoulos, Grécia, 1953


Demasiado jovem, não se julga bem. Demasiado velho, o mesmo. Se não pensamos o suficiente, se pensamos demasiado, obstinamo-nos e não passa daí. Se examinamos a nossa obra logo após a havermos feito, estamos ainda muito imbuídos dela; se muito tempo depois, já não nos ajustamos a ela. Assim os quadros, vistos de muito longe e de muito perto. Existe apenas um ponto indivisível que é o verdadeiro lugar; os outros estão demasiado perto, ou demasiado longe, demasiado alto ou demasiado baixo. A perspectiva determina-o na pintura. Mas na verdade e na moral quem o determinará?




Blaise Pascal, Pensamentos, Europa-América, Sintra, 1978 pp 381