terça-feira, março 27, 2018

Os psicopatas não reconhecem

Foto; Dora Maar

Este Blogue foi criado em 16 de Março de 2007; tem exatamente 11 anos e 11 dias. Esta é uma efeméride para assegurar o acordo insuspeito, mas demasiado inverosímil, entre nós, os que por aqui andamos a dar testemunho de uma certa beleza e os do Teatro que comemoram hoje o seu dia, em protesto, por terem tão pouco dinheiro e tantas ideias. Confesso, que é, antes de mais, isso que me move - não ouso dizer - Beleza - porque parece que foram abolidas as maiúsculas, sinal de um desaparecimento mais substancial; o da BELEZA, DO MAL, DO BEM etc etc.; a propósito, veja-se este artigo para quem, como eu, ainda considera o determinismo para as ações humanas uma mera hipótese ficcional, repare-se na focalização no cognitivismo para explicar os comportamentos:


«Quando se discursa perante uma plateia, será impossível ignorar as pistas dos ouvintes, seja um bocejo ou um olhar atento. Este é um processo de reconhecimento automático da perspetiva dos outros e uma característica típica da cognição humana. O exemplo é dado por Arielle Baskin-Sommers, investigadora da Universidade de Yale (EUA) e uma das autoras de um artigo científico publicado recentemente na revista norte-americana Proceedings  of  the National Academy of Sciences (PNAS) em que se concluiu, após testes realizados em 106 homens detidos numa prisão de alta segurança no Connecticut (EUA) que os psicopatas têm uma “diminuição da propensão automática para assumir a perspetiva dos outros”.
Há muito tempo que os investigadores se intrigam com o facto de os psicopatas – que se caracterizam por um comportamento anti - social e fracas emoções interpessoais – conseguirem um desempenho normal em testes clássicos para avaliar a capacidade de ter a perspetiva dos outros”, começa por explicar ao PÚBLICO Arielle Baskin-Sommers.
Esse terá sido o gatilho para o estudo que incluiu a avaliação de 106 homens detidos entre os 21 e os 67 anos. Desta vez, os testes psicológicos – com tarefas especialmente orientadas para a análise desta característica cognitiva – revelaram que “psicopatas e não psicopatas são capazes de ter a perspetiva dos outros quando isso lhes é explicitamente solicitado, mas os psicopatas são menos capazes de se envolver automaticamente neste processo”. Os resultados, diz a investigadora, sugerem que “estes indivíduos não possuem um aspeto típico da cognição humana, o que poderá contribuir para o seu comportamento anti-social implacável”.

O título do artigo publicado na PNAS (“Psicopatas falham em perceber automaticamente a perspetiva de outros”) faz claramente a distinção entre esta perceção automática do outro e um outro processo controlado e deliberado. Apesar de notar que estes indivíduos exibem um desrespeito “crónico e notório” pelo bem-estar de outros com um comportamento insensível e manipulador, os autores lembram que este perfil dos psicopatas tem sido associado a défices nos processos sociais e afetivos. “No entanto, com este estudo mostramos que alguns dos comportamentos psicopáticos podem ser originados num défice cognitivo, especificamente uma incapacidade de automaticamente reconhecer a perspetiva do outro.”
Os estudos anteriores, adiantam os cientistas, basearam-se apenas em testes numa vertente controlada da teoria da mente (ToM, na sigla em inglês) e que também é conhecida como perspetiva cognitiva, consistindo precisamente na capacidade para atribuir estados mentais a outras pessoas e, dessa forma, prever o seu comportamento.

Neste caso, os investigadores quiseram testar o processo de ToM automático e perceber se os psicopatas mantinham o bom desempenho normal observado em estudos anteriores com o processo controlado e deliberado. “Com os processos de ToM automáticos, um indivíduo representa os pensamentos ou sentimentos de outra pessoa sem pretender fazê-lo, mesmo nos casos em que tal processamento seja irrelevante para a tarefa em questão”, descreve o artigo na PNAS. E, conclui-se, os psicopatas falham nesta ação imediata.

“É como falar numa aula: a atenção não deve estar na audiência, mas é impossível ignorar as pistas sociais, como um bocejo. Posso adaptar o que estou a dizer ou a forma como estou a falar para reagir a essas dicas. Isso reflete o nosso processo automático de considerar os pensamentos dos que nos rodeiam. Não preciso deliberadamente de ter a perspetiva dos meus alunos, isso simplesmente acontece automaticamente”, exemplifica Arielle Baskin-Sommers.
Os limites da cognição

Esta perspetiva automática e aparentemente involuntária, que os psicopatas parecem não conseguir alcançar, e a perspetiva controlada e deliberada são uma parte fundamental da cognição humana. Os investigadores também demonstram neste artigo que a magnitude desta interferência no processo automático de ter a perspetiva dos outros “está correlacionada com os comportamentos insensíveis no mundo real”, como, por exemplo, o número de ataques de que são acusados. No caso das tarefas que exigiam uma ToM controlada, os psicopatas responderam com um desempenho normal.

Os autores lembram ainda que os psicopatas têm sido descritos como “almas esvaziadas” e sem escrúpulos e que alguns clínicos consideram a psicopatia como uma síndrome de insanidade moral. Isso quer dizer que estas “almas esvaziadas” podem ter a perspetiva de outros (não mostrando défice nas capacidades de ToM em processos controlados), mas que, simplesmente, não se importam? “Não penso que seja justo dizer que não se importam. Eles mostram uma diminuição da propensão automática para assumir a perspetiva dos outros, que é um processo cognitivo. Não é necessariamente consciente. Quando são convidados a entender explicitamente a perspetiva dos outros, conseguem fazê-lo”, responde Arielle Baskin-Sommers, adiantando que o seu laboratório está a realizar “vários estudos sobre a identificação e especificação dos limites da cognição em indivíduos psicopatas”.
in Público 27 de Março 2017

segunda-feira, março 26, 2018

Martha Nussbaum – Entrevista Exclusiva





O certo e o errado.



Foto Eve Arnold

Supõe que trabalhas numa biblioteca, verificando os livros que as pessoas requisitam, e um amigo te pede para o deixares roubar uma obra de referência difícil de encontrar que quer possuir.Podes hesitar em concordar por diversas razões. Podes recear que ele seja apanhado e que, assim, tanto ele como tu arranjem problemas. Ou podes querer que o livro fique na biblioteca para que tu próprio possas consultá-lo.
Mas também podes pensar que aquilo que ele propõe está errado – que ele não deve fazê-lo e que tu não deves ajudá-lo. Se pensas assim, o que quer isso dizer, o que torna isso verdadeiro, se é que há algo que o torne verdadeiro? 

Dizer que isso está errado não é dizer apenas que vai contra as regras. Pode haver más regras que proíbam aquilo que não está errado — tal como uma lei contra criticar o governo. Uma regra também pode ser má por exigir algo que é errado — tal como uma lei que exige a segregação racial em hotéis e restaurantes. As ideias de certo e errado são diferentes das ideias daquilo que vai ou não contra as regras. Caso contrário, não podiam ser usadas na avaliação das regras, bem como na avaliação das ações.Se pensas que seria errado ajudares o teu amigo a roubar o livro, então sentes-te desconfortável com a ideia de o fazeres: de algum modo, não queres fazê-lo, mesmo que também estejas relutante em recusares ajudar um amigo. Donde vem o desejo de não o fazer? Qual é o seu motivo, a razão por detrás dele?

Há várias maneiras pelas quais algo pode estar errado, mas neste caso, se tivesses de explicá-lo, provavelmente, dirias que seria injusto [unfair no original] para os restantes utentes da biblioteca, que podem estar tão interessados no livro como o teu amigo, mas que o consultam na sala das obras de referência, onde qualquer pessoa que precise dele pode encontrá-lo. Podes também sentir que deixar o teu amigo levar o livro trairia aqueles que te empregam, que te pagam precisamente para prevenir que coisas como estas aconteçam.
Estas ideias relacionam-se com os efeitos sobre outras pessoas — não necessariamente com efeitos sobre os seus sentimentos, uma vez que podem nunca vir a descobri-lo, mas, ainda assim, com algum tipo de dano. Em geral, a ideia de que algo é errado depende do seu impacto não só na pessoa que o pratica, mas também noutras pessoas. Se o descobrissem, não gostariam e opor-se-iam. Mas supõe que tentas explicar tudo isto ao teu amigo e ele diz: «Eu sei que o bibliotecário não havia de gostar se viesse a dar pela falta do livro e que, provavelmente, alguns dos restantes utentes da biblioteca ficariam aborrecidos se descobrissem que o livro tinha desaparecido, mas que mal faz? Eu quero o livro; por que razão hei-de preocupar-me com os outros?»

Espera-se que o argumento de que tal seria errado lhe dê uma razão qualquer para não o fazer. Mas que razão poderá ter alguém que, pura e simplesmente, não se preocupa com as outras pessoas e que pode escapar impunemente para se coibir de fazer qualquer coisa que, normalmente, é considerada errada? Que razão pode ter para não matar, roubar, mentir ou magoar outras pessoas? Se conseguir aquilo que quer ao fazer essas coisas, por que razão não há-de fazê-las? E, se não há nenhuma razão para não as fazer, em que sentido será isso errado'?

É claro que a maioria das pessoas se preocupam em certa medida umas com as outras. Mas, se alguém não se preocupa, a maior parte de nós não conclui que a moral não se aplica a essa pessoa. A moral não deixa de se aplicar automaticamente a uma pessoa que mata alguém apenas para lhe roubar a carteira, sem se preocupar com a vítima. O facto de ela não se preocupar não torna a sua atitude correta: devia preocupar-se. Mas por que razão deveria ela preocupar-se?  Tem havido muitas tentativas para responder a esta questão. Um tipo de resposta consiste em tentar encontrar algo com que a pessoa já se preocupe para depois identificar a moral com isso.

Thomas Nagel, Que quer dizer tudo isto? 1987, 1995, Gradiva, p56,57

sábado, março 24, 2018

sexta-feira, março 16, 2018

Como há uma ténue linha entre a civilidade e a barbária.

Foto de Robert Capa

A guerra, em que não queríamos acreditar, estalou e trouxe consigo a decepção. Não só é mais sangrenta e mais mortífera do que todas as guerras passadas, por causa do aperfeiçoamento das armas de ataque e de defesa, mas, pelo menos, tão cruel, exasperada e brutal como qualquer uma delas. Infringe todas as restrições a que os povos se obrigaram em tempos de paz – o chamado Direito Internacional – não reconhece nem os privilégios do ferido e do médico, nem a diferença entre o núcleo combatente e o pacífico da população, e viola o direito de propriedade. Derruba, com cega cólera, tudo o que lhe aparece pela frente, como se depois dela já não houvesse de existir nenhum futuro e nenhuma paz entre os homens. Desfaz todos os laços da solidariedade entre os povos combatentes e ameaça deixar atrás de si uma exasperação que, durante longo tempo, impossibilitará o reatamento de tais laços. Tornou também patente o fenómeno, dificilmente concebível, de que os povos civilizados se conhecem e compreendem entre si tão pouco que podem virar-se, cheios de ódio e de repulsa, uns contra os outros. Quando falo do desapontamento, já todos sabem a que me refiro. Não é necessário ser um fanático da compaixão; pode muito bem reconhecer-se a necessidade biológica e psicológica do sofrimento para a economia da vida humana e, no entanto, condenar a guerra nos seus meios e objectivos, suspirar pela sua cessação. Afirmou-se, sem dúvida, que as guerras não poderão terminar enquanto os povos viverem em tão diversas condições de existência, enquanto as valorações da vida individual diferirem tanto entre uns e outros e os ódios, que os separam, representarem forças instintivas anímicas tão poderosas. Estava-se, pois, preparado para que a humanidade se visse ainda, por muito tempo, enredada em guerras entre os povos primitivos e os civilizados, entre as raças humanas diferenciadas pela cor da pele e, inclusive, entre os povos menos evoluídos ou incultos da Europa. Mas das grandes nações da raça branca, dominadoras do mundo, às quais coube a direcção da humanidade, que se sabia estarem ocupadas com os interesses mundiais, e cujas criações são os progressos técnicos no domínio da natureza e os valores culturais, artísticos e científicos; destes povos esperava-se que saberiam resolver de outro modo as suas discórdias e os seus conflitos de interesses. Dentro de cada uma dessas nações tinham-se prescrito ao indivíduo elevadas normas morais, às quais devia ajustar a sua conduta, se pretendesse participar na comunidade cultural. Estes preceitos, muitas vezes rigorosíssimos, exigiam muito dele: uma ampla auto-limitação e uma acentuada renúncia à satisfação das pulsões. Estava-lhe sobretudo proibido servir-se das extraordinárias vantagens que o uso da mentira e do engano proporcionam na luta com os outros homens. O Estado civilizado considerava estas normas morais como o fundamento da sua existência, saía abertamente em sua defesa se alguém ousava infringi-las e, inclusive, declarava como impraticável a sua sujeição ao exame do entendimento crítico. Era, pois, de supor que ele próprio quisesse respeitá-las e que não pensasse empreender contra elas algo que constituísse uma negação dos fundamentos da sua própria existência. Por último, pôde observar-se como dentro das nações civilizadas se encontravam inseridos certos restos de povos que eram em geral incómodos e que, por isso, só com relutância e com limitações eram admitidos a participar na obra comum da cultura, para a qual se tinham revelado suficientemente aptos. Mas era de crer que os grandes povos tivessem alcançado uma tão grande compreensão dos seus elementos comuns e tanta tolerância em face das suas diferenças que não confundissem num só, como na antiguidade clássica, os conceitos de “estrangeiro” e de “inimigo”. Confiando neste acordo dos povos civilizados, inumeráveis homens trocaram a sua residência na pátria pelo domicílio no estrangeiro e associaram a sua existência às relações comerciais entre os povos amigos. Mas aquele a quem a necessidade de vida não encadeava constantemente ao mesmo lugar podia formar para si, com todas as vantagens e todos os atractivos dos países civilizados, uma nova pátria maior em que ele se comprazia sem obstáculo e sem suspeitas. Saboreava assim o mar azul e cinzento, a beleza das montanhas nevadas e dos verdes prados, o encanto dos bosques do Norte e a magnificência da vegetação meridional, a atmosfera das paisagens sobre as quais pairam grandes recordações históricas, e a serenidade da natureza intacta. Esta nova pátria era também para ele um museu repleto de todos os tesouros que os artistas da humanidade civilizada tinham, há muitos séculos, criado e legado. Ao deambular neste museu de sala em sala, pude comprovar imparcialmente quão diversos eram os tipos de perfeição que, entre os outros compatriotas seus, tinham sido criados pela mistura de sangues, pela história e pela peculiaridade da mãe Terra.(...)


Sigmund Freud, Escritos sobre a  guerra e a Morte, p7 e 8,Lusosofia, Covilhã.
Tradução Artur Morão

sexta-feira, março 09, 2018

A sair do labirinto cético.


Marc Chagall


" Há, contudo, uma ideia que se pode provar ter origem no exterior da mente do próprio Descartes. (...) As perfeições reunidas na sua ideia de Deus são tão superiores a tudo o que Descartes pode encontrar em si mesmo que tal ideia não pode ser criação sua.  Mas a causa de uma ideia não deve ser menos real do que a ideia ela mesma. por consequência , Descartes pode concluir que não está só no Universo: existe também na realidade um Deus que corresponde à sua ideia. Deus, ele próprio é fonte dessa ideia, tendo-a inculcado em Descartes à nascença (...). Assim, Deus é a primeira entidade fora da sua própria mente que Descartes reconhece. E Deus tem um papel essencial na reconstrução subsequente do edifício das ciências. Porque Deus não tem qualquer defeito, argumenta Descartes, não pode ser enganador, porque o dolo ou o engano dependem sempre de algum defeito da parte de quem engana. O princípio de que Deus não é enganador é o fio condutor que permite a Descartes fazer-nos sair do labirinto do ceticismo."

A Kenny, Nova História da Filosofia Ocidental, vol.3,Gradiva, 2011, pp. 137, 138

sábado, março 03, 2018

Se duvido e, tenho de duvidar, então suspendo o meu juízo, não semeio opiniões quando desconheço a qualidade da semente




FOTOGRAFIA DE EVE ARNOLD (1912/2012) Festival Rock, 1968

Vou supor, por consequência, não o Deus sumamente bom, fonte da verdade, mas um certo génio maligno, ao mesmo tempo extremamente poderoso e astuto, que pusesse toda a sua indústria em me enganar. Vou acreditar que o céu, a terra, as cores, as figuras, os sons, e todas as coisas exteriores não são mais que ilusões de sonhos com que ele arma ciladas à minha credulidade. Vou considerar-me a mim próprio como não tendo mãos, não tendo olhos, nem carne, nem sangue, nem sentidos, mas crendo falsamente possuir tudo isto. Obstinadamente vou permanecer agarrado a este pensamento e, se por este meio não está no meu poder conhecer algo verdadeiro, pelo menos está em meu poder que me guarde com firmeza  de dar assentimento ao falso, bem como ao que aquele ser enganador, por mais poderoso, por mais astuto, me possa impor. Mas isto é uma empresa laboriosa e uma certa preguiça reconduz-me ao modo habitual de viver. Como um cativo que frui em sonhos de uma liberdade imaginária, quando mais tarde começa a desconfiar que dormia, teme que o acordem e(…)espontaneamente nas opiniões antigas e receio acordar. Temo que a vigília laboriosa que sucede à placidez do sono não seja consumida, depois, no meio de uma certa luz, mas entre as trevas inextrincáveis das dificuldades já discutidas. (…) Por conseguinte, suponho que é falso tudo o que vejo. Creio que nunca existiu nada daquilo que a memória enganadora representa. Não tenho, absolutamente, sentidos; o corpo, a figura, a extensão, o movimento e o lugar são quimeras. Então, o que será verdadeiro? Provavelmente uma só coisa: que nada é certo.

René Descartes (1641), Meditações sobre a Filosofia Primeira. Trad. Gustavo de Fraga. Coimbra: Almedina, 1992, pp. 113-118