quarta-feira, outubro 09, 2024

Adelaide


Este texto é escrito no gabinte do meu departamento, de Ciências Sociais e Humanas. Daqui vê-se o mar embora a foto não mostre,  veem-se também outras coisas que não estão à nossa frente mas que se espraiam como ondas fortes no pensamento. A minha colega Adelaide senta-se aqui comigo, do outro lado da mesa onde escrevo. Ontem aqui esteve e antes de ontem e há uma semana e há um mês e mesmo nas férias em Agosto quando a Escola está meia silenciosa e os professores, na sua larga maioria, aquecem os pés ao Sol de Verão, a Adelaide vinha para o gabinete de Ciências Sociais e Humanas e sentava-se nesta mesa a trabalhar no computador. Há muitos anos que era parceira, nos tempos mortos, desta colega aqui, no gabinete e aqui com ela encetávamos e continuávamos conversas de muitos dias e horas. É verdade que no tempo as coisas ganham contornos mais definidos e é sem dúvida no tempo que também os laços afetivos mais fortes se constroem, com o tempo, testemunho e presença.

Hoje de manhã contaram-me que a Adelaide tinha sido levada de ambulância da Escola diretamente para o hospital onde tinha sido imediatamente operada, por causa de  um acidente cardio vascular grave. Hoje sinto  a falta da Adelaide, o seu lugar vazio do outro lado da mesa é uma presença dolorosa,  a sua voz, o seu arquear de sobrancelhas. Este texto é só para dizer isso, que contamos contigo Adelaide, para muitas voltas à Lua  e outras tantas ao Sol, aqui na Escola, no Departamento de Ciências Sociais e Humanas.

Helena Serrão

quarta-feira, outubro 02, 2024

A guerra: comércio letal



 


Raymond Departon, Chicago, 1968

Concluímos, portanto, que a guerra não pertence ao domínio das artes nem ao das ciências. Ela é mais precisamente parte da existência social do homem. A guerra é um conflito de grandes interesses, que é resolvido através do derramamento de sangue - que é a única maneira pela qual ela difere de outros conflitos. Em vez de compará-la a uma arte, deveríamos compará-la com maior precisão ao comércio, que também é um conflito de interesses e de atividades humanas e que está ainda mais próximo da política que, por sua vez, pode ser considerada uma espécie de comércio em maior escala. A política é, além do mais, o útero em que se desenvolve a guerra - onde os seus contornos já existem na sua forma rudimentar, como as características de criaturas vivas em seus embriões.

A diferença essencial é que a guerra não é o uso da vontade orientada para um objeto inanimado, como no caso das artes mecânicas, ou para um corpo que seja animado, mas passivo e submisso, como é o caso da mente e das emoções humanas nas belas artes. Na guerra, a vontade é orientada para um corpo animado que reage. Deve ser óbvio que a codificação intelectual utilizada nas artes e nas ciências é inadequada a uma atividade destas. Ao mesmo tempo, é evidente que a luta contínua em busca de leis semelhantes às adequadas aos domínios da matéria inanimada estava fadada a levar a um erro após o outro. Apesar disto, eram exatamente as artes mecânicas que se esperava que a arte da guerra imitasse. Era impossível imitar as belas artes, uma vez que eles mesmas ainda não possuem suficientes leis e regras próprias. Até o momento, todas as tentativas de formular qualquer uma têm sido consideradas excessivamente limitadas e parciais, e têm sido constantemente solapadas e abolidas pelas correntes de opinião, pela emoção e pelos costumes.

(…) Parte do propósito deste livro é verificar se um conflito de forças vivas, como o que se desenvolve e é decidido na guerra, continua sujeito a leis gerais, e se estas leis podem proporcionar um guia útil para a ação. Uma coisa é evidente: esta questão, como qualquer outra que não ultrapasse a capacidade intelectual do homem, pode ser esclarecida através de uma mente investigadora, e a sua estrutura interna pode ser revelada até um certo ponto. Somente isto é suficiente para transformar em realidade o conceito da teoria.

 Quando um ataque de surpresa deixar um exército incapaz de empregar a sua força de uma maneira ordenada e racional, então o efeito da surpresa não poderá ser posto em dúvida. Quando a teoria houver determinado que um ataque envolvente leva a um êxito maior, embora menos certo, teremos que perguntar se o General que utilizou este envolvimento estava primordialmente interessado na magnitude do êxito. Se estivesse, escolheu a maneira correta de agir. Mas se ele o utilizou para tornar o êxito mais certo, baseando a sua ação, não tanto nas circunstâncias do momento, mas na natureza genérica dos ataques envolventes, como já ocorreu inúmeras vezes, então ele interpretou mal a natureza do meio que escolheu e cometeu um erro.

 A tarefa da análise e da prova crítica não é muito difícil em casos deste tipo. Fatalmente será fácil, se nos restringirmos aos propósitos e aos efeitos mais imediatos. Isto pode ser feito de uma maneira bastante arbitrária, se isolarmos a questão do seu cenário e a estudarmos somente sob essas condições.

 Mas na guerra, como na vida de uma maneira geral, todas as partes de um todo estão interligadas e, assim, os efeitos produzidos, por menores que sejam as suas causas, devem influenciar todas as operações militares subsequentes e modificar de algum modo o resultado final, por menor que seja esta modificação. Da mesma maneira, todo meio deve influenciar até mesmo o propósito final.

 Podemos continuar investigando os efeitos produzidos por uma causa até onde isto parecer valer a pena. Da mesma maneira, um meio não deve ser avaliado simplesmente em relação ao seu fim imediato: aquele fim deve ser avaliado como um meio para atingir o próximo e mais elevado e podemos, assim, seguir uma cadeia de propósitos sequenciais até chegarmos a um que não exija qualquer justificação, porque a sua necessidade é evidente por si mesma. Em muitos casos, principalmente naqueles que envolvem ações de vulto e decisivas, a análise deve ser estendida até o propósito final, que é obter a paz.

Da guerra, CARL VON CLAUSEWITZ,

Tradução do inglês Carlos Nascimento